Desigualdade social à luz das teorias da justiça Por Vitória Agnoletto y Anna Paula Bagetti Zeifert

Resumo: O presente estudo visa relacionar as Teorias da Justiça de Amartya Sen (2011) e de Martha C. Nussbaum (2013) com a questão das desigualdades sociais, a partir da perspectiva de Tim Anderson (2015), demonstrando que as desigualdades graves colocam em perigo a dinâmica da sociedade, do desenvolvimento individual e social, na medida que degrada a integridade da própria sociedade, colocando em crise os sistemas sociais fundamentais e a garantia de direitos individuais e sociais (econômico, político, social e cultural). Deste modo, o trabalho objetiva discutir a importância de combater as desigualdades sociais, tendo em vista que é um problema básico que causa exclusão social, ocasionando a obstrução na autodeterminação individual e social, dialogando com as Teorias da Justiça. Na obra A Ideia de Justiça, Amartya Sen (2011) desenvolve o enfoque das capacidades para tratar a questão da desigualdade, com foco especial nas desigualdades de liberdade efetiva, isto é, a liberdade que o indivíduo possui para realizar aquilo que valoriza. Além disso, estabelece uma relação entre desigualdade e pobreza, considerando que a privação relativa dentro dos espaços da sociedade pode produzir uma privação absoluta no espaço das capacidades. Enquanto isso, Martha C. Nussbaum (2013) formula a abordagem das capacidades para explicar as garantias humanas centrais que devem ser garantidas pelo Estado, e pela comunidade internacional, para todos os indivíduos. Nesse contexto, o enfoque das capacidades explica o mínimo de garantias sociais centrais e pode se adaptar as diversas questões de justiça e desigualdade social, buscando especificar certas condições que são necessárias para que uma sociedade seja minimamente justa e que seus cidadãos tenham um conjunto de direitos assegurados. Relacionando as desigualdades sociais e a justiça social, a pesquisa utiliza como método de abordagem o hipotético dedutivo, sendo do tipo exploratória utilizando uma base teórica presente na filosofia política contemporânea.

Abstract : The present study aims to relate the Theories of Justice of Amartya Sen (2011) and Martha C. Nussbaum (2013) with the problem of social inequalities, from the perspective of Tim Anderson (2015), showing that serious inequalities endanger the dynamics of society, individual and social development, as it degrades the integrity of society itself, putting in crisis the fundamental social systems and the guarantee of individual and social rights (economic, political, social and cultural). In this way, the objective of this work is to discuss the importance of combating social inequalities, since it is a basic problem that causes social exclusion, causing obstruction in individual and social self-determination, dialoguing with Justice Theories. Amartya Sen (2011) develops a capabilities approach to address the issue of inequality, with a special focus on the inequalities of effective liberty, that is the liberty that the individual possesses to achieve what he values. Moreover, this study aims to establishes a relation between inequality and poverty, considering that the relative deprivation within the spaces of the society can produce an absolute deprivation in the space of the capabilities. Meanwhile, Martha C. Nussbaum (2013) formulates a capabilities approach to explain the basics human rights that must be guaranteed by the state, and the international community, for all individuals. In this context, the capabilities approach explains the minimum of central social guarantees and can adapt the various issues of justice and social inequality, seeking to specify certain conditions that are necessary for a society to be justly fair and for its citizens to have a set of ensured rights. Relating social inequalities and social justice, the research uses as a method of approach the hypothetical deductive, being the exploratory type using a theoretical basis presents in contemporary political philosophy.

1 Introdução

A discussão em volta das desigualdades sociais, nesse estudo, visa relacionar as Teorias da Justiça de John Rawls (2002), de Amartya Sen (2011) e de Martha C. Nussbaum (2013) com a questão apontada por Tim Anderson (2015) e Fernando Luís Machado (2015), demonstrando que as desigualdades graves colocam em perigo a dinâmica da sociedade, do desenvolvimento individual e social, na medida que degrada a integridade da própria sociedade, colocando em crise os sistemas sociais fundamentais e a garantia de direitos individuais e sociais. Deste modo, o trabalho objetiva discutir a importância de combater as desigualdades sociais, tendo em vista que é um problema básico que causa exclusão social, ocasionando a obstrução na autodeterminação individual e social, dialogando com as Teorias da Justiça. Amartya Sen (2011) desenvolve o enfoque das capacidades para tratar a questão da desigualdade, com foco especial nas desigualdades de liberdade efetiva, enquanto Martha C. Nussbaum (2013) formula a abordagem das capacidades para explicar as garantias humanas centrais que devem ser garantidas pelo Estado, e pela comunidade internacional, para todos os indivíduos.

Nesse contexto, o enfoque das capacidades explica o mínimo de garantias sociais centrais e pode se adaptar as diversas questões de justiça e desigualdade social, buscando especificar certas condições que são necessárias para que uma sociedade seja minimamente justa e que seus cidadãos tenham um conjunto de direitos assegurados. Relacionando as desigualdades sociais e a justiça social, a pesquisa utiliza como método de abordagem o hipotético dedutivo, sendo do tipo exploratória utilizando uma base teórica presente na filosofia política contemporânea.

2 Compreendendo o termo desigualdades sociais

O tema das desigualdades sociais é frequentemente citado em discursos, seja mediático, político, econômico ou social. Além de ser citado, juízos de valores sobre a questão são construídos através das falas e dos discursos, e na maioria das vezes são juízos críticos, isto é, que consideram negativas as desigualdades sociais e, por isso, precisam ser combatidas, reduzidas ou eliminadas, como demonstra o sociólogo Fernando Luís Machado (2015). As desigualdades sociais não são apenas diferenças sociais entre grupos ou populações com culturas e estilos de vida distintos e específicos, assim como não são meras distinções de talentos, capacidades e desempenhos individuais. Isto é, “as desigualdades sociais são diferenças sistemáticas e persistentes de acesso a bens, recursos e oportunidades, que se estabelecem entre pessoas, grupos sociais ou mesmo populações inteiras” (MACHADO, 2015, p. 299). Portanto, as diferenças de acesso a bens, recursos e oportunidades existem independentemente das diferenças entre culturas, estilos de vida, talentos e capacidades. Entretanto, as desigualdades sociais podem derivar de diferenças graves entre culturas ou entre capacidades, ou seja, são elementos que existem independentemente, mas podem se relacionar e gerar outras formas e intensidades de desigualdades. Sendo assim, “os talentos e os esforços individuais contam, mas o efeito específico desses talentos e esforços faz-se sentir num contexto de desigualdades sociais estruturadas que também têm consequências.” (MACHADO, 2015, p. 301).

Partindo de uma compreensão inicial de desigualdade social é importante entender o plural desse termo. Desigualdades sociais é a forma mais apropriada para tratar do tema, tendo em vista que assumem diversas formas e possuem diferentes mecanismos e instrumentos. Machado (2015) fala de multidimensionalidade das desigualdades sociais, partindo da ideia de que as desigualdades podem se classificar em três grandes grupos: desigualdades de classe, desigualdades étnico-raciais e desigualdades de gênero. O autor também adota uma outra classificação, de modo que existem desigualdades vitais, existenciais e de recursos. É importante compreender essas duas classificações para melhor entender a dinâmica das desigualdades e como elas são, na maioria das vezes, interligadas e interdependentes. Desigualdades vitais são “desigualdades perante a vida e a morte, decorrentes de diferentes graus de exposição a riscos fatais. São desigualdades que remetem para o estado de saúde das populações e grupos sociais” (MACHADO, 2015, p. 301). Na contemporaneidade, são as desigualdades medidas através da expectativa de vida, da taxa de mortalidade infantil e da incidência de doenças. Esse tipo grave de desigualdade se relaciona com as desigualdades de classe, isto é, com as menores condições de acesso à bens e recurso e, consequentemente, à saúde, assim como se relaciona com desigualdades étnico-raciais e de gênero, tendo em vista que em muitos países as populações marginalizadas ou vulneráveis possuem menor acesso e qualidade de atendimento na área da saúde. Enquanto isso, existenciais são as desigualdades que remetem ao “reconhecimento de cada ser humano enquanto pessoa”, isto é, da oportunidade e possibilidade de cada indivíduo realizar livremente seus projetos de vida e de acessar direitos. Portanto, as desigualdades existências se expressam através da imposição do sentimento de insignificância sob determinados grupos e populações, como ocorreu com a escravidão dos povos indígenas e afrodescendentes e com o patriarcado.

O tipo de qual mais se trata de desigualdade são as desigualdades de recursos, especialmente porque é uma desigualdade que influencia diretamente na formação de desigualdades vitais e existências. Porque, como aponta Machado (2015), os recursos são o rendimento, a escolaridade, as qualificações profissionais, o capital social e o poder. Percebe-se, portanto, que existe uma pluralidade de recursos que, consequentemente, interferem nos demais âmbitos da sociedade, influenciando no maior ou menor acesso à saúde ou nas oportunidades. Nesse contexto, as categorias sociais estão diretamente relacionadas com as desigualdades sociais, especialmente as desigualdades de recursos. Deste modo, tendo em vista que as desigualdades sociais são “diferenças sistemáticas e persistentes de acesso a bens, recursos e oportunidades, geradas independentemente dos talento, capacidades e desempenhos individuais” (MACHADO, 2015, p. 303), elas tendem a cristalizar-se e a formar categorias sociais duradouras, que podem ser categorias de classe, de género, étnico-raciais, de status, de idade ou outras.

Isto é, quanto mais cristalizada as desigualdades maiores são as possibilidades de perpetuação dessas categorias, o que acaba por introduzir rigidez na sociedade, pois dificulta a possibilidade de individuas mudarem de categorias. Portanto, quanto mais aberto o acesso a diferentes tipos de recurso, maior será a possibilidade de mobilidade social e, consequentemente, menores chances de perpetuação de categorias fechadas e perenes. Tendo essa dinâmica em vista, percebe-se que a relação entre tipos de desigualdades sociais e categoriais sociais é uma relação biunívoca, funciona nos dois sentidos, pois, por um lado, os vários tipos de desigualdades sociais podem conduzir à formação de categorias sociais cristalizadas e duradouras e, por outro lado, a persistência das categorias contribuirá não só para manter a distribuição desigual desse recurso ou dessas desigualdades vitais e existenciais, mas também para criar ou acentuar desigualdades que não estavam inicialmente presentes na formação dessas categorias específicas (MACHADO, 2015).

Sendo as desigualdades sociais diferenças sistemáticas e persistentes de acesso a bens, recursos e oportunidades, geradas independentemente dos talento, capacidades e desempenhos individuais, que podem cristalizar-se e formar categorias sociais que impossibilitam a mobilidade social e tornam rígida a sociedade, quais são as causas das desigualdades sociais? Machado (2015) acredita que as instituições, tais qual os sistemas de ensino, a economia e o mercado de trabalho, o Estados e as políticas públicas e os valores culturais, são parte do contexto em que as causas se formam. Os sistemas de ensino, no mundo contemporâneo, são o principal veículo de mobilidade social, pois o ensino acessível a todos permite a promoção da igualdade de oportunidades, mas, por outro lado, a escola pode reproduzir desigualdades. Isso quer dizer que o sistema de ensino são parte do contexto não só das desigualdades, mas também da igualdade de oportunidades, o que muda é o modo de funcionamento dessas instituições. O mesmo ocorre com a economia e o mercado de trabalho, que pode ser causa de desigualdades assim como de igualdade. Uma instituição particularmente fundamental nessa discussão são os valores culturais, tendo em vista que consistem em “sistemas estruturados de preferencias que enquadram o que socialmente se pensa e faz e que orientam as escolhas e as práticas coletivas e individuais” (MACHADO, 2015, p. 314). Deste modo, os valores culturais interferem nas desigualdades sociais e na igualdade de oportunidades, de modo que essa interferência existe sempre que os valores predominantes favorecem práticas de igualdade e de justiça social ou processos de inferiorização e exclusão de pessoas ou grupos. Por exemplo, se a própria ideia de igualdade de oportunidades for um valor cultural socialmente partilhado é mais provável que ela se torne numa prática efetiva do que nos países onde essa orientação cultural não tiver a mesma expressão, o mesmo se aplica à presença ou ausência de valores como o respeito pela diversidade cultural e a defesa da interculturalidade (MACHADO, 2015).

Por outro lado, o professor e doutor em economia, Tim Anderson (2015), propõe uma releitura da questão do porquê a desigualdade importa. De acordo com o autor, é necessário se aprofundar nas explicações formuladas a respeito da importância da desigualdade, tendo em vista que não há consenso no assunto. Diferentes explicações são sustentadas pelos economistas em relação ao aumento ou à diminuição da desigualdade nas últimas décadas. Enquanto isso, partindo de um ponto de vista sociológico, existe uma grande preocupação em identificar as fontes da desigualdade social, suas consequências, seus tipos, em que grau é considerada desejável, quais são os vínculos existentes entre desigualdade e pobreza e quais são as forças que a impulsionam na contemporaneidade. Deste modo, considerando as amplas e diversas explicações existentes, os argumentos econômicos, as explicações sobre a pobreza e o desenvolvimento humano, as teorias de contrato social e de justiça social e, também, os estudos sobre integridade social, são explorados com o objetivo de compreender a importância da desigualdade.

Nesse contexto, na última década do século XX, o Banco Mundial (1990) tratou da ideia de que a pobreza importa, enquanto a desigualdade não, tendo em vista que a pobreza é condição de uma vida sem o mínimo de dignidade humana e a desigualdade é funcional, na medida que cria incentivos para participar da economia. Essa perspectiva ainda é sustentada e defendida por economistas. Todavia, foi realizada uma revisão desse argumento, concluindo que a desigualdade importa, na medida que causa danos ao crescimento econômico e representa um risco de instabilidade financeira e política. Entretanto, ambos argumentos colocam a questão da desigualdade em um plano secundário, assim como não consideram a destruição da sociedade, do meio ambiente e dos meios de subsistência informal, de acordo com Anderson (2015). O referido autor defende uma possibilidade de argumentação, em relação a importância da desigualdade, em torno da integridade social, que se refere “aquellas perspectivas que colocan el enfasis sobre la integridad de los sistemas sociales, otorgando prioridade a la inclusion social y, de este modo, haciendo de la exclusion y de la desigualdad grave, temas de preocupacion fundamental” (ANDERSON, 2015, p. 201). Nessa perspectiva a desigualdade grave coloca em perigo a dinâmica da sociedade, do desenvolvimento individual e social, na medida que degrada a integridade da própria sociedade, colocando em crise os sistemas sociais fundamentais, como a saúde e a educação, argumenta o autor. Portanto, a explicação com base na integridade social considera a desigualdade importante pois é um problema básico que causa exclusão social que, por sua vez, tem como consequência a obstrução na autodeterminação individual e social.

3 As Teorias da Justiça: perspectivas para se pensar uma sociedade mais justa e igualitária

John Rawls (2002), filósofo que formula Uma Teoria da Justiça, tem como princípio a ideia de que uma sociedade justa seria aquela que todos os valores sociais (liberdade, igualdade, dignidade e direitos) são distribuídos de maneira equânime, isto é, consiste na concepção de justiça como equidade. Além disso, o autor trabalha a ideia de justiça social, da qual Anderson (2015) utiliza para discutir a questão da importância das desigualdades sociais. No ponto de vista de Tim Anderson as teorias sobre o contrato social abordam a questão da desigualdade tratando da existência de um nível funcional de desigualdade e de um nível ilegítimo de desigualdade. Deste modo, o contrato social daria legitimidade para que exista desigualdade funcional, com o objetivo de gerar incentivos. Enquanto isso, a desigualdade que ultrapassa os limites de funcionalidade seria considerada ilegítima, na medida que promove problemas de ordem social. O autor percebe que as teorias contratualistas e de justiça social contribuem para tratar de maneira mais direta a questão da desigualdade social. Por exemplo, Ralws formulou uma teoria da justiça a partir da ideia do contrato social, em que trabalha a ideia de justiça como equidade. De acordo com os princípios formulados por Rawls, a desigualdade seria permitida de acordo com a ideia de equidade, para auxiliar os indivíduos em situação menos privilegiada na sociedade. Deste modo, existiria uma distribuição equitativa de bens controlada pela imparcialidade. Todavia, Anderson considera “las explicaciones en torno a una justicia social idealizada, con frecuencia dejan de lado la funcion social integral y la agencia” (ANDERSON, 2015, p. 201).

Amartya Sen (2011), economista indiano, inspira-se em alguns elementos da teoria de John Rawls (2002) para desenvolver uma abordagem das capacidades, que pretende ir além da atratividade de Rawls, com o objetivo de tratar de problemas de injustiça reais, de sociedades reais e de indivíduos reais. Nesse contexto, a obra A Ideia de Justiça demonstra as principais características da concepção de justiça do autor, que parte do viés comparativo, de modo que considera fundamental que a justiça seja pensada na sociedade que efetivamente existe e nas pessoas que nela vivem. O autor acredita que atentar para as vidas humanas possibilitará encontrar a liberdade como um elemento significativo para a contribuição do bem-estar, pois permite ao indivíduo escolher o que considera de valor para sua vida, assim como possibilita a busca por objetivos que estão além do próprio bem-estar individual. Portanto, a ideia trabalhada por Sen é de que o ser humano possui capacidade de escolher e oferecer razões, que significa que possui capacidade de fazer algo. Essa capacidade de escolha e decisão de objetivos é permitida pela liberdade.

Amartya Sen (2011) percebe a liberdade como elemento de extrema importância para possibilitar às pessoas a chance real de fazerem o que bem entenderem de suas vidas, elemento que necessita ser garantido para todos indivíduos de uma sociedade. Deste modo, o autor realiza um apontamento sobre a liberdade, que diz respeito a importância de compreender a necessidade de um indivíduo possuir liberdade para escolher um estilo dentro dos diferentes modos de vida. Isso é, a capacidade que uma pessoa possui para escolher a vida que deseja levar, capacidade possível através da liberdade de escolha. Esses apontamentos são importantes para se pensar no tipo de vida que um ser humano pode levar com dignidade, pois a possibilidade de realizar escolhas quanto a própria vida é uma questão de dignidade. Portanto, na abordagem das capacidades de Sen, o foco é a liberdade que possui, realmente, uma pessoa para fazer as coisas que tem razão para valorizar. Deste modo, se percebe que existe uma desigualdade quanto as capacidades, pois existem indivíduos com maior ou menor vantagem ou maior ou menor oportunidade real para realizar as coisas que valoriza. Anderson (2015) reconhece que as ideias sobre desenvolvimento humano, especialmente presentes na abordagem das capacidades, abordam a questão social da pobreza e da desigualdade como problemas relacionados. Entretanto, realiza uma crítica ao método individualista na medida que essas teorias, como o enfoque de Amartya Sen, caem na análise do indivíduo quando começam a discutir o problema da pobreza e da desigualdade.

Inspirada pelas abordagens de justiça de John Rawls (2002) e Amartya Sen (2011), Martha C. Nussbaum (2013) constrói um enfoque das capacidades, especialmente influenciado pelas perspectivas de Sen e pela concepção aristotélica e marxista de indivíduo. Nesse contexto, Nussbaum formula uma abordagem diferenciada, que se aprofunda nas desigualdades que sofrem pessoas com deficiências, mulheres e, a partir disso, propõe uma lista de capacidades humanas com o objetivo de tratar de questões referentes à justiça social. Deste modo, partindo da concepção aristotélica e marxista de indivíduo, Nussbaum reflete sobre o benefício social em combater situações de desigualdade, considerando que a sociedade será regida pela justiça, e não pela injustiça. Além disso, compreende que ao combater a desigualdade social, a sociedade terá a vantagem de respeitar a dignidade humana das pessoas e auxiliar o desenvolvimento de seus potenciais, independentemente de ser útil ou não para a sociedade em geral.

A partir disso, Martha Nussbaum (2013) utiliza a abordagem das capacidades para explicar as garantias humanas centrais que devem ser efetivadas pelo Estado e pela comunidade internacional para todos os indivíduos. Essa explicação foca nas capacidades humanas, no que as pessoas são capazes, de fato, de fazer e ser, instruídas, de certa forma, pela ideia intuitiva de uma vida apropriada à dignidade do ser humano. Deste modo, a autora constrói uma lista de dez capacidades como exigências para que o indivíduo possua uma vida com dignidade, como uma determinação mínima de justiça social, ou seja, a sociedade que não garante essas capacidades em um nível mínimo não pode ser considerada justa. Portanto, o enfoque das capacidades “é uma explicação do mínimo de garantias sociais centrais e é compatível com diferentes visões sobre como lidar com questões de justiça e distribuição que surgiram uma vez que todos os cidadãos estivessem acima do nível mínimo.” (NUSSBAUM, 2013, p.91). O enfoque das capacidades de Nussbaum não pretende ser uma doutrina ou uma teoria completa sobre direitos básicos, apenas busca especificar certas condições que são necessárias para que uma sociedade seja minimamente justa e que seus cidadãos tenham um conjunto de direitos fundamentais assegurados.

4 Desigualdades Sociais e Justiça Social: pensar formas mais dignas de viver

Desigualdade social, de acordo com uma definição tradicional, consiste na distância entre as posições de indivíduos e grupos na hierarquia de acesso a bens socialmente relevantes, como renda e riqueza, e recursos de poder, como direitos, participação política e posições políticas (BRAIG; COSTA; GÖBEL, 2015). A partir disso, a Agenda 2030 define que a desigualdade é um problema global que requer soluções integradas, com o objetivo de reduzir as desigualdades socioeconômicas e combater as discriminações de todos os tipos. A Plataforma Agenda 2030 desenvolveu dezessete objetivos para o desenvolvimento sustentável do Brasil até 2030, o décimo objetivo da lista trata de reduzir as desigualdades dentro e fora do país, pois o mundo é mais desigual hoje do que em qualquer momento da história desde 1940 e “a desigualdade de renda e na distribuição da riqueza dentro dos países têm disparado, incapacitando os esforços de alcance dos resultados do desenvolvimento e de expansão das oportunidades e habilidades das pessoas, especialmente dos mais vulneráveis” (PLATAFORMA AGENDA 2030, 2019). Nesse contexto, Nussbaum (2013) percebe que a realidade global apresenta um cenário de desigualdades moralmente alarmantes, enquanto isso, a distância entre as nações-Estado que detêm poder (econômico e político) e as nações vulneráveis permanecem aumentando. Por isso, a referida autora analisa que nascer em uma nação ou em outra acaba definindo e estabelecendo as chances e possibilidades de vida de cada indivíduo. Deste modo, uma teoria da justiça deve confrontar a questão das desigualdades e o desafio que representam “em um mundo no qual o poder de mercado global e das empresas multinacionais erodiram consideravelmente o poder e a autonomia das nações” (NUSSBAUM, 2013, p. 278).

As estatísticas e os números apresentados por órgãos internacionais são importantes para discutir a questão, mas não realiza o processo de dizer tudo o que é necessário saber para compreender o que as pessoas estão vivendo no mundo, qual ou quais desigualdades interferem em suas oportunidades, no seu acesso à saúde, educação e na possibilidade de exercer seus direitos para exigir uma vida digna. Isto é, as desigualdades vão além delas mesmas, pois ocasionam outras desigualdades. Por exemplo, a desigualdade de gênero influência nas oportunidades básicas de vida, assim como as desigualdades de classe, casta, raça, religião e etnia.

As privações impostas por essas desigualdades são, em certa medida independentes da pobreza geral, apesar de comumente a prosperidade geral aumentar o alcance dos direitos à educação, assistência médica e outras oportunidades básicas. Qualquer teoria da justiça que tem por objetivo fornecer uma base para oportunidades de vida dignas e oportunidades para todos os seres humanos deve reconhecer tanto as desigualdades internas a cada nação quanto as desigualdades entre as nações, e deve estar preparada para tratar da interseção complexa dessas desigualdades em um mundo de interconexão crescente e global (NUSSBAUM, 2013, p. 79).

Em uma análise voltada especialmente para o cenário de desigualdade do contexto latino-americano, Mancini (2015) propõe uma análise do vínculo entre riscos sociais, desigualdade e regimes de bem-estar na América Latina. A partir disso, o debate das desigualdades dinâmicas e persistentes questiona os enfoques utilizados para atender os níveis de bem-estar das sociedades. Nesse contexto, a abordagem das capacidades de Nussbaum (2013) é fundamental para criticar a perspectiva das necessidades básicas, que não considera as desigualdades distributivas, assim como o enfoque do desenvolvimento, que não é capaz de atentar para a heterogeneidade de situações individuais, e o problema da distribuição igual de recursos, que não leva em conta o princípio de equidade para atender indivíduos considerando seus diferentes níveis de necessidades para atingir um estado de bem-estar. É possível verificar que as sociedades latino-americanas testemunham uma mudança social em relação, principalmente, à distribuição de segurança e risco entre o Estado e o mercado, bases da gestão das proteções sociais e da garantia do bem-estar.

Analisando o contexto latino-americano, a desigualdade se agravou em relação às décadas passadas, enfrentando o surgimento de novas desigualdades econômicas, sociais e culturais. Novas exclusões, práticas sociais e discriminações são adicionadas àquelas existentes no século passado. Nesse contexto, desigualdades antigas e novas cruzam as coordenadas do espaço latino-americano. Os contrastes sociais, herança de tempos remotos, se sucedem em múltiplas dimensões da vida social, como reflexo de condições estruturais injustas. Selva (2015) percebe que os rostos da desigualdade aparecem e se reafirmam através do desemprego, da precarização do trabalho, das diferenças na inserção dos países nas redes globais e das disparidades na distribuição da riqueza. Assim, as antigas causas de desigualdades, ou os chamados fatores estruturais, continuam a operar ao mesmo tempo em que surgem novos tipos de desigualdade nas sociedades do conhecimento e da globalização. Deste modo, as abordagens de Sen (2011) e de Nussbaum (2013) formulam propostas e soluções para esse cenário mundial de desigualdades. Em especial a lista das capacidades de Nussbaum possui a flexibilização, isto é, pode se adaptar às diferentes culturas e sociedades, o que é fundamental para pensar nas desigualdades sociais que enfrentam os países da América Latina. Anderson (2015) realiza uma crítica às teorias da justiça ao tentarem explicar a importância das desigualdades sociais. Entretanto, o papel das abordagens de Sen (2011) e Nussbaum (2013) não é de explicar e trabalhar a ideia de desigualdade social, mas sim de compreender como a injustiça e a desigualdade se relacionam e, acima de tudo, como construir os meios para chegar até uma sociedade justa.

Sen (2011) demonstra o impacto das desigualdades de oportunidades e de liberdade em sua obra, propondo que uma sociedade justa precisa combater esse problema, pois as desigualdades existenciais refletem nas condições de vida e saúde dos indivíduos. Além disso, Nussbaum (2013) desenvolve a lista das dez capacidades fundamentais para garantir uma vida digna. São as dez capacidades humanas centrais: a vida, a saúde física, a integridade física, os sentidos, imaginação e pensamento, as emoções, a razão prática, a afiliação, a relação com outras espécies, o acesso ao lazer e ter controle sobre o próprio ambiente político e material. Ao pensar em uma vida sem alguma dessas capacidades no nível mínimo logo podemos concluir que tal vida não possui o mínimo de dignidade para ser vivida. As capacidades são para todos indivíduos, sendo que cada capacidade deve existir em, pelo menos, um nível mínimo, considerando que quando o nível da capacidade estiver abaixo do mínimo o indivíduo não estaria sendo tratado com mínimo de funcionamento verdadeiramente humano. Deste modo, o objetivo deve ser que os cidadãos estejam sempre com os níveis de capacidade acima do mínimo, afim de garantir as condições fundamentais para ter uma vida humana verdadeira.

Considerações Finais

As Teorias da Justiça, em especial a abordagem das capacidades de Sen (2011) e Nussbaum (2013), representam propostas de combate às desigualdades sociais graves, que atuam em vários âmbitos das sociedades contemporâneas, influenciando o acesso a bens, oportunidades e direitos. Através da lista das capacidades e da compreensão de liberdade de Sen é possível pensar propostas interventivas para o cenário latino-americano, que sofre sérios impactos derivados do número de desigualdades.

Apesar de Anderson (2015) desacreditar na objetividade das teorias em questão, o presente estudo demonstra como o enfoque das capacidades pretende se adaptar às diversas sociedades e seus problemas, propondo uma sociedade justa não tão distante e nem impossível, mas possível através da garantia da mínima dignidade de todos indivíduos.

O combate às graves desigualdades só é possível através da possibilidade de mobilidade social, indicada como vetor de flexibilização das relações sociais por Machado (2015). Essa política é presente em vários aspectos do pensamento de Sen (2011) e Nussbaum (2013), aplicando ainda outros elementos fundamentais para visualizar e enfrentar problemas de injustiça presentes em qualquer sociedade contemporânea.

Referências

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  • BRAIG, Marianne; COSTA, Sérgio; GÖBEL, Barbara. Desigualdades sociales e interdependencias globales en América Latina: una valoración provisional. Cidade do México: Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales, ano LX, número 223, p. 209-236, 2015.
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  • MANCINI, Fiorella. Riesgos sociales en América Latina: una interpelación al debate sobre desigualdad social. Cidade do México: Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales, ano LX, número 223, p. 237-264, 2015.
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  • PLATAFORMA AGENDA 2030. Plataforma Agenda 2030: Acelerando as transformações para a Agenda 2030 do Brasil. Disponível em: <http://www.agenda2030.com.br/> Acesso em: 16 de março de 2019.
  • RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
  • SELVA, Alma Rosa Alva de la. Los nuevos rostros de la desigualdad en el siglo xxi: la brecha digital. Cidade do México: Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales, ano LX, número 223, p. 265-286, 2015.
  • SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Ricardo Doninelli Mendes e Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Notas:

[*] Vitória Agnoletto es Acadêmica do Curso de Graduação em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ); Bolsista FAPERGS do projeto de pesquisa “Justiça Social: os desafios das políticas sociais na realização das necessidades humanas fundamentais”, grupo de Pesquisa “Cidades, Justiça Social e Sustentabilidade” (CNPq). Anna Paula Bagetti Zeifert es Doutora em Filosofia (PUCRS). Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos – e do Curso de Graduação em Direito da UNIJUI/Brasil. Integrante do Grupo de Pesquisa Cidades, Justiça Social e Sustentabilidade (CNPq). Coordenadora do projeto de pesquisa “Justiça Social: os desafios das políticas sociais na realização das necessidades humanas fundamentais”. Editora-Chefe da Revista Direito em Debate (Qualis B1).

[**] Ponencia presentada en el marco del Coloquio de Derechos Humanos del Departamento de Derecho UNS llevado a cabo en el mes de abril en 2019 en la UNS.

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