Justiça social: um diálogo entre Roman Krznaric e Martha Nussbaum Por Schirley Kamile Paplowski y Anna Paula Bagetti Zeifert

Resumo: Vivemos em um período da história humana que pode ser considerado conflitivo, especialmente no aspecto da dicotomia entre o social e o individual. Há ampla informação e comunicação pelos meios contemporâneos. Contudo, aparentemente o que as redes sociais produziram foi o reforço do “eu”, do narcisismo, em sacrifício da coletividade. Paralelamente, desigualdades sociais persistem na atualidade, afetando a vida digna de muitas pessoas, com protagonismo no Brasil, país que está entre os cinco mais desiguais do mundo (consoante dados da Organização das Nações Unidas), em que uma pequena parcela da população detém riqueza proporcional ao patrimônio de cerca de 100 milhões de brasileiros. Um dos objetivos do presente estudo reside na demonstração de que o declínio de sentimentos nobres como a empatia e a compaixão estão atrelados às mazelas sociais e econômicas perpassadas por grandes grupos. A ruína desses sentimentos tem como grande causa o fato de a educação nas escolas e universidades do mundo abdicarem das humanidades e das artes para atender aos fins do lucro. Resultados catastróficos podem surgir desse cenário, como a “desumanização” das relações e dos sujeitos, a extinção da justiça social e os ataques à democracia. Além de demonstrar a relação entre as referidas intercorrências, é objetivo deste estudo discutir a privação de direitos humanos a que está submetido grande contingente populacional, como alternativa para obstar e alertar a sua ocorrência à comunidade acadêmica. Ainda, difundir práticas empáticas amplamente estudadas por Roman Krznaric; sob a perspectiva de produzir um estudo teórico para redução de desigualdades e para a mobilização grupal de reconhecimento da humanidade do outro, com a consequente luta pela efetividade de seus direitos (ou capacidades, consoante a teoria desenvolvida pela filósofa Martha Nussbaum).

 

1 Introdução

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Com esta epígrafe, José Saramago (2017) inicia seu denso e reflexivo texto a que denominou de Ensaio sobre a cegueira, recentemente publicado pela editora Companhia das Letras em sua segunda edição. O romance literário tem o condão de permitir a cada leitor uma experiência única, que reside nos caminhos traçados pela arte da escrita e da leitura. De antemão, Saramago anuncia a diferença entre a possibilidade de olhar e de ver, esse último que transcende a superficialidade que se apresenta diante dos olhos. Em uma perspectiva, a obra traz experiências suportadas por pessoas afetadas pela epidemia da cegueira, a qual afetou uma sociedade independentemente de condição econômica ou social, idade ou etnia de seus integrantes.

Neste primeiro momento, o texto reúne condições de nos fazer sentir na própria pele a ausência da visão. Permite refletir como estamos incluindo aqueles que seguem a vida nas condições de faltar-lhes um dos sentidos. Por outro lado, oportuniza analisar a sociedade hodierna, em que nos cegamos para a obscuridade que afeta a vida de outras existências e como a condição humana se depara com determinadas necessidades, das quais se originam o abuso e a segregação social. Uma metáfora em alusão à cegueira moral e à omissão humana diante de práticas tidas como habituais.

Com este introito, justamente a respeito da influência das artes (neste caso a literária) na condução de nossos pensamento e ações, é que iniciamos este singelo estudo. A abordagem aqui materializada é fruto de pesquisas bibliográficas realizadas no bojo do projeto de pesquisa “Justiça Social: os desafios das políticas sociais na realização das necessidades humanas fundamentais”, atrelado ao curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Através de um enfoque multidisciplinar, o que se pretende discutir é como reduzir desigualdades sociais por intermédio de ações das pessoas. Isto é: o ato de ver o outro e nutrir por esta vida e pelas relações interpessoais amor, empatia e cuidado, como elementos-chave para a justiça.

A fim de conduzir a pesquisa, partimos da constatação do declínio de sentimentos como a empatia e a compaixão, as quais podem ser desenvolvidas através um processo educacional comprometido com as artes e as humanidades. Os estudos já desenvolvidos que serviram de fundamento a este ensaio foram as obras O poder da empatia: a arte de se colocar no lugar do outro para transformar o mundo, de Roman Krznaric, e Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades, de Martha Nussbaum. A abordagem metodológica empreendida é do tipo exploratória., amparada em pesquisa bibliográfica e no desenvolvimento do artigo em dois momentos, tudo no intuito de dialogar as fontes e demonstrar como a empatia pode auxiliar no desenvolvimento da justiça social.

2 A empatia e os estudos de Roman Krznaric

Ao se falar em empatia, uma das primeiras lembranças que pode surgir ao intelecto é a conhecida regra de ouro (fazer ao outro somente aquilo que gostaria que fizessem a você). Contudo, o historiador Krznaric (2015) explica que este sentimento vai além, pois requer a introdução de uma existência na pele da outra, de ver o mundo com os olhos e as condições daquela pessoa. Basta refletir sobre uma ação que seja agradável para você (como receber uma surpresa em aniversário). Isso não significa que outrem também tenha desejo em ser assim agraciado. Portanto, a empatia requer que as ações sejam moldadas não sob sua perspectiva, pura e simplesmente, mas de acordo com aquilo que diga respeito à existência e aos gostos da pessoa diversa. No nosso exemplo, imaginando que as crenças religiosas alheias excluam a comemoração de aniversário, como ocorre com os adeptos da religião Testemunhas de Jeová, realizar a surpresa desejada por quem está do “lado de fora” pode não só falhar, como causar transtornos, uma vez que ausente a coincidência de interesses.

Corresponde dizer que a empatia requer um esforço ainda mais complexo. Consiste na “arte de se colocar no lugar do outro por meio da imaginação, compreendendo seus sentimentos e perspectivas e usando essa compreensão para guiar as próprias ações” (KRZNARIC, 2015, p. 10). Roman também distingue a empatia da ideia de compaixão. Para ele, essa última está relacionada com o sentimento de piedade e não corresponde à compreensão das emoções do ponto de vista do outro.

Para expandir o potencial empático de cada ser humano, Krznaric (2015, p. 17) defende a prática de seis hábitos, através de constatações por seu trabalho de campo. São, pois: acionar o seu cérebro empático, dar o salto imaginativo, buscar aventuras experienciais, praticar a arte da conversação, viajar em sua poltrona e inspirar uma revolução. O motivo pelo qual o autor alerta sejam aqueles cultivados explica-se na constatação unânime que fazemos: “porque neste momento da história estamos sofrendo de um ‘déficit de empatia’ crônico, tanto na sociedade quanto em nossa vida pessoal.”

Profissionais da área da psicologia argumentam que vivenciamos uma “epidemia de narcisismo”, com o reforço do “eu” e a redução drástica do interesse pelas outras vidas (KRZNARIC, 2015, p. 17-62). Esse movimento tem causa em múltiplos fatores. Influenciado pela economia, que retrata um modelo competitivo de sociedade, em detrimento da cooperação, pela lógica consumista (que reza seja a felicidade alcançada por meio das aquisições individuais), pelo modelo fragmentador de urbanização das cidades e paradoxalmente pelas redes sociais, na medida em reforçam a valorização das individualidades e possibilitam a aproximação metafórica de quem está distante, ao mesmo tempo em que distanciam quem se encontra próximo fisicamente.

Na sociedade ocidental, a estrutura dominante para se pensar sobre a natureza humana foi a ideia de que somos fundamentalmente egoístas. […]. Os estudantes estão mergulhados numa cultura de individualismo competitivo e sendo recompensados muito mais por suas realizações pessoais que por sua capacidade de cooperar com os outros.

Do ponto de vista da cosmopolita Martha Nussbaum (2015) – cujas ideias serão melhor abordadas na sequência –, o fracasso da perspectiva do outro está intimamente relacionado com as dificuldades incorporadas pela educação na contemporaneidade, haja vista que os currículos escolares e acadêmicos estão renunciando das artes e das humanidades para, em seu lugar, destinar o foco ao lucro (por meio de cursos técnicos e disciplinas que não envolvam o raciocínio crítico). Aquelas, segundo entendimento de Nussbaum, são responsáveis pela atividade reflexiva porque permitem a imaginação empática. Novos estilos de vida, como morar sozinho e abdicar do envolvimento em atividades comunitárias, também exercem influência nesse cenário (KRZNARIC, 2015).

Os sujeitos, em sua maioria, podem desenvolver aquilo que Krznaric (2015, p. 43) chamou de “homo empathicus”, e que apenas uma pequena parcela da população não possui condições de desenvolvê-lo, como psicopatas. Acerca das questões de gênero, o autor explica que existem poucas evidências a indicar que homens e mulheres diferem na capacidade cognitiva de se pôr na pele do outro. “Uma razão final para abordar diferenças de gênero com cautela, é que a verdadeira questão não é o grau de empatia com que nascemos, mas quanto estamos dispostos e somos capazes de aumentá-lo.”

O autor defende que nossos sentimentos empáticos não se encontram estabilizados e imutáveis, e que podemos desenvolver nosso potencial empático ao longo da vida. Conquistar o primeiro hábito (“acione o cérebro empático”) está interligado com o bem-estar e a inteligência emocional de todos os envolvidos, cujo fomento é possível através do processo educacional que envolva contato com outras pessoas, superando o aprendizado tradicional por meio de livros (KRZNARIC, 2015), bem como pela inserção nas variadas formas de artes (NUSSBAUM, 2015).

O segundo hábito (“dê o salto imaginativo”) diz respeito a reconhecer as barreiras que nos impedem de praticar mais a empatia e buscar superá-las. Consistem no preconceito, na autoridade, na distância e na negação. A propensão que temos a estereotipar e rotular grupos e pessoas não só impede o contato e o conhecimento de suas vidas, como reiteradamente deprecia a humanidade destes sujeitos.

o que todos os estereótipos têm em comum, quer sejam produto de política, religião, nacionalismo ou outras forças, é um esforço para desumanizar, para anular a individualidade, impedir-nos de olhar alguém nos olhos e saber seu nome. A consequência é criar uma cultura da indiferença na qual a empatia tem dificuldade em penetrar (KRZNARIC, 2015, p. 68).

A autoridade se revela na proporção significativa de pessoas que cumprem determinadas ordens expedidas por agentes de poder, ainda que seu conteúdo seja moralmente incorreto ou produza sofrimento e dor, sem capacidade de criticar o porquê da conduta. Krznaric exemplifica com o caso emblemático na história humana em que a obediência à autoridade se mostrou cruel: Adolf Eichmann (um dos responsáveis pelo holocausto). Todavia, o autor alerta que essa obediência não é algo inato na natureza humana, mas sensível ao contexto e à cultura.

Outra barreira é a distância, nos sentidos espacial, social e temporal, haja vista que vidas distantes e estranhas afastam nosso interesse moral em estabelecer conexões empáticas com elas. E por fim, a negação, sentimento de não admitir a imaginação empática como mecanismo de defesa, a evitar refletir sobre o grau de responsabilidade que possuímos pelo sofrimento alheio. Uma forma de superar esse bloqueio reside no ato de humanizar o outro, um esforço para imaginar suas condições (como ao dialogar).

“Busque aventuras experienciais” é o terceiro hábito de pessoas extremamente empáticas. Por diversos meios esse hábito pode ser alcançado. Por exemplo, a imersão física de mudar a sua rotina para compreender a realidade de outra pessoa (cadeirante, indivíduo cego ou mudo, trabalhador de classe pobre que conta com menos de dez reais para se manter ao dia), explorar vivências através de viagens (não necessariamente físicas) e até mesmo na cooperação, no trabalho em grupo, em um coral. Outra constatação comum é a de que presenciamos a crise da conversação, porque resumida a superficialidades e a liquidez, ou até mesmo na negativa de qualquer tentativa de diálogo. Ao passo que a curiosidade por outros sujeitos e a conversação com eles é um dos hábitos de empatistas, Roman (2015) o elenca na lista do desenvolvimento de nossas conexões com os outros. Talvez o melhor exemplo para este hábito é o comportamento das crianças, que, curiosas aguçadas, indagam e abrem espaço para a comunicação.

Um diálogo prazeroso e atento, sensitivo à exposição da realidade alheia, permite compartilhar histórias e confiança. Em outros termos, possibilita a partilha de alegrias e a redução de aflições individuais. Rubem Alves (2019), escritor brasileiro, de um modo bastante claro singularizou a importância da escuta nas relações interpessoais, ponto de partida para uma conversação com sensibilidade, atenção e curiosidade. Em Se eu fosse você (do livro O amor que acende a lua):

O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranquila. Em silêncio. Sem dar conselhos. Sem que digam: “Se eu fosse você” A gente ama não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A fala só é bonita quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E é na não-escuta que ele termina. Não aprendi isso nos livros. Aprendi prestando atenção. […]

Desenvolver um diálogo, que aqui podemos referir como “humanizado”, não só tem o potencial de superar a crise da falta de conversação e de florescer o campo da imaginação empática, como também amenizar a dor da solidão que atinge os sujeitos na vida contemporânea.

O quinto hábito – “viaje em sua poltrona” – condiz com formas de transpor nosso pensamento do local onde estamos agora, por meio da imaginação. Nesse aspecto, as diversas formas de arte (cênica, plástica, corporal, literária) podem encorajar-nos a viver histórias que não as nossas, bem como inspirar atos empáticos. Roman (2015, p. 174) exemplifica a conquista do hábito pelo cinema, por intermédio de pinturas e fotografias. “Aprendemos não apenas lendo livros ou analisando estatísticas, mas tendo imagens em nossa mente e memórias.” É nesse momento que o autor alerta para o impacto que novas tecnologias estão afetando nosso modo de sentir (a cultura on-line), uma vez que a revolução digital tem aberto espaço para o reforço do narcisismo.

Por fim, o último hábito sugerido na lista de Krznaric (2015, p. 192): “inspire uma revolução”. A empatia tem impacto em cada sujeito em si considerado, como também na coletividade. O foco trazido pelo autor reside na criação de movimentos sociais sobre causas que possam engajar múltiplas pessoas. Trata-se de um trabalho com outros em prol de metas comuns, referentes a demandas humanas, assim como por outras vidas, acerca da vegetal e animal. “Para cada um de nós, a culminação de nossas jornadas empáticas é ajudar a criar essas ondas de empatia coletiva que podem desempenhar um papel no enfrentamento dos grandes problemas do nosso tempo […]”, tais como “da pobreza e desigualdade à violência armada e ao colapso ambiental.”

A empatia e sua ausência podem explicar uma série de questões atuais e prementes que vêm questionando nossa própria humanidade, como a aversão a outros sujeitos pela condição de nacionalidade, de cor de pele e de religião. Na medida em que compreendemos a fundamentalidade da cooperação e da ajuda mútua para o processo evolucionário, especialmente sociedades justas, o sentimento de empatia é vislumbrado com grande afeição, porquanto em pequenos gestos em que se faz presente é perceptível a satisfação que dele decorre, para uma vida mais plena e feliz a todos os envolvidos. Logo, “em última análise, a melhor razão para desenvolver o hábito de empatizar é que ele pode criar os laços humanos que fazem valer a pena viver.” (KRZNARIC, 2015, p. 22).

 

3 Martha Nussbaum, a Teoria das Capacidades e as humanidades na educação

Autora da obra Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades, que tem como pano de fundo a constatação de um problema global, Martha Nussbaum alerta seus leitores a respeito da submissão da educação ao lucro. Sua análise não se limita a um país em específico, mas ao movimento global pernicioso que está eliminando determinadas disciplinas de seus currículos (artes e humanidades), prezando por outras que atendam aos fins lucrativos de uma nação, como cursos técnicos e matérias que não exijam o raciocínio crítico e a argumentação (a exemplo da matemática). Critica também o próprio modelo educacional de mera absorção, que não estimula habilidades de ser e estar efetivamente, ou seja, não desenvolvem habilidades emocionais e empáticas.

A cosmopolita explica, ao longo da obra, quão importantes são tais capacidades para a garantia e a saúde de um sistema democrático, assim como enfatiza a ideia de vida boa. Isso significa dizer que democracia e país desenvolvido economicamente não estão necessariamente garantindo qualidade de vida aos seus cidadãos, uma vez que o progresso econômico não está diretamente relacionado ao progresso humano. Esse, de acordo com Nussbaum (2015), é alcançado pelo atendimento de um nível de direitos, que se traduzem em capacidades.

A Teoria das Capacidades, desenvolvida pela própria Nussbaum (2013), se materializa em uma lista das capacidades humanas centrais, segundo a qual aspectos básicos de todo ser humano devem ser cultivados, assim como necessidades básicas atendidas, a fim de se obter uma vida digna e, com isso, alcançar justiça social. Seu método de enfoque nas capacidades é uma abordagem dos direitos humanos, de acordo com a concepção da própria Nussbaum (2013).

Paralelamente à análise de Roman Krznaric, Nussbaum (2015) afirma, portanto, uma crise silenciosa pela qual as sociedades de todos os países estão enfrentando: uma crise na educação. Isso justamente pelas mudanças radicais e perniciosas implementadas no ensino básico e superior, que estão eliminando matérias relativas às humanidades e às artes dos currículos institucionais. Essas circunstâncias possuem elevada potencialidade de impactar negativamente na vida humana, essencialmente no critério subjetivo, na medida em que as referidas disciplinas são responsáveis por aperfeiçoar nossas relações e sentimentos. Permitem o pensamento crítico e à visibilidade de outro ser como um fim em si mesmo. pelo fato de que a capacidade de pensar e de imaginar permite posicionar-se no lugar do outro, como humano e complexo.

Entretanto, para viver com tais capacidades, sobretudo empáticas, e um ambiente saudável de democracia, não necessariamente há que se optar entre um modelo de educação que promova o lucro e outro que promova a cidadania plena (NUSSBAUM, 2015). A filósofa argumenta a possibilidade de convivência entre esses dois sistemas, sem descuidar do papel crucial das humanidades, até porque o primeiro modelo delas necessita, sobretudo no quesito de criatividade.

O desenvolvimento econômico, para Nussbaum (2015, p. 24), oculta as desigualdades sociais que existem no país. Partindo desse elemento, os educadores que defendem o crescimento da economia não só ignoram as artes como delas têm medo. Deixa-se de ver o outro, aqui especialmente o outro em situação de desigualdade e de necessidades prementes, como um indivíduo humano. “É mais fácil tratar as pessoas como objetos manipuláveis se você nunca aprendeu outro modo de enxergá-las.” É o que Martha Nussbaum denomina de estupidez moral, cuja grande adversa é a arte.

Materializando essa construção teórica, suficiente o exemplo seguinte, acerca da conquista da percepção do outro e de sua alma através das artes, especificamente cênicas. Um grupo de alunos faz a leitura de texto selecionado sobre as desigualdades sociais de um bairro ou região de sua cidade, tendo conhecimento das condições subumanas. O fato de tomar conhecimento do dado é relevante, mas torna o evento conhecido, somente, o que poderá variar a depender de cada estudante, de seu potencial já desenvolvido em colocar-se no lugar do outro. Agora, supondo que o(a) professor(a) da turma opte para, além de trazer o dado fático para conhecimento de seus alunos, dê a eles a responsabilidade de uma tarefa especial: a de organizar o grupo para um teatro daquela circunstância.

A partir disso, os estudantes, nas condições de seu desenvolvimento, inserem-se na vivência efetiva do bairro, conhecendo-a de perto, visitando, conversando com os moradores. Anotam as perspectivas, as necessidades, os medos, os sonhos, as surpresas com cenas desconhecidas. Engrenam o roteiro e dividem papéis. Encenam com emoção o que perpetrou seus olhos, mentes e corpos ao conhecer as vidas diferentes. Oportunizam que demais pessoas conheçam aquilo que tiveram oportunidade e sensibilidade para fazer.

Logo, vê-se como as artes são decisivas para, além do aprendizado, permitir a compaixão e a empatia. Isso é: a humanidade do ser humano, essencial ao saudável desenvolvimento das democracias, que carecem de participação efetiva e de qualidade de seus integrantes. Exatamente nesse toar, harmonizam-se os pensamentos de autores como Tagore e Ralph Ellison (apud NUSSBAUM, p. 107), que afirmam: “para alcançar a compreensão plena de que o cidadão democrático precisa, não basta saber que os estigmas sociais e a desigualdade existem; ele tem de passar pela experiência de participar da posição estigmatizada, algo que tanto o teatro como a literatura possibilitam.”

Há determinados pontos, tidos como cruciais, que a educação para a cidadania democrática deverá tratar, como o narcisismo, a impotência, a vergonha, o nojo e a compaixão. E mais, uma das competências discutidas desde o início da obra, que é o pensamento crítico, o raciocínio, e não mera aceitação de tradições e autoridades. Na questão da autoridade, Nussbaum (2015, p. 41) exemplifica a subserviência incomum de seres normais para pressões do grupo, o que foi constatado por diversas pesquisas

Para ela, as situações (ou estruturas) perniciosas se concentram na falta de responsabilização pelos atos (como no anonimato), a ausência de críticas abertas e a destituição de humanidade e de individualidade de algumas pessoas que estão sujeitas a outras. Todas essas questões podem integrar um processo educacional, que fortaleça senso de responsabilidade e de compaixão, e que ainda contribua para uma democracia saudável. Na associação da compaixão com a empatia, surge o que Martha Nussbaum (2015) chama de “raciocínio posicional”, que permite ver o mundo do ponto de vista da outra pessoa.

Agora, expostas as construções basilares de dois autores contemporâneos, poderíamos nos perguntar: afinal, o que um sentimento nobre pode fazer a respeito das desigualdades sociais?

Para isso, recapitulamos as constatações em comum: crises hodiernas, da conversação, dos sentimentos, da educação. A desigualdade social emerge nesse quadro concomitantemente, no sentido de desajustes persistentes no ideal de justiça, especialmente nas sociedades da América Latina. Nestas, muito se observa a contrastante condição econômica e de má distribuição das riquezas, bem como a vulnerabilidade no gozo efetivo dos direitos fundamentais reconhecidos em documentos nacionais e internacionais. A respeito, o Brasil é um entre apenas cinco países – com a África do Sul, Argentina, Colômbia e Estados Unidos – em que o 1% mais rico recebe mais de 15% da renda total. (SOUZA; MEDEIROS, 2019). Ainda, “às desigualdades de renda e riqueza somam-se a distribuição injusta de serviços essenciais. Não só a renda e a riqueza de uma família determinam sua condição de vida, mas também o acesso à energia elétrica, à água encanada, à coleta de esgoto […].” (OXFAM BRASIL, 2018), o que revela o círculo vicioso e de longa data em que estão inseridas populações inteiras.

Das condições para superação, trouxemos a aliança de duas medidas: hábitos empáticos e currículos comprometidos fática e efetivamente com as artes e as humanidades. O ponto de partida é de uma constatação, de que parcela considerável da população mundial vive em condições de empreender tentativas de sobrevivência, e não mais de vivência, na medida em que carentes do mínimo fundamental para uma vida digna – que valha a pena ser vivida, nas palavras de Martha Nussbaum (2013). Após, tendo em vista esse dado, atenta-se para o fenômeno da desigualdade social e buscam-se alternativas para reverter esse quadro, o que já indica uma primeira preocupação com o outro.

Em consequência, surge a preocupação: como motivar que mais pessoas “conquistem esse olhar sobre o outro”? Através da educação para as humanidades (NUSSBAUM, 2015) e de técnicas estudadas por Roman Krznaric (2015). Com a implantação dos objetivos delineados pelos autores que servem de referência a este estudo, possível a mobilização grupal de reconhecimento da humanidade do outro e a luta pela efetividade de seus direitos (capacidades).

Revela-se, assim, o papel fundamental da pesquisa para conquista deste processo teórico, bem como da própria sociedade para a realização de um movimento empático global (perpassando especialmente por instituições de ensino, comunitárias e familiares), que necessita admitir a carência e vulnerabilidade na vida humana, superadas pela ajuda mútua e cooperação.

Considerações Finais

A construção teórica neste estudo desenvolvida, que comunica o historiador e a filósofa, segue uma linha de métodos, para com sucesso pôr em prática a perspectiva adotada, qual seja, a de conquistar a percepção da realidade alheia e por ela exercer empatia (estimuladas na educação de qualidade e na concretização dos seis hábitos empáticos narrados Roman Krznaric). Com isso, ações individuais empáticas poderão engajar ações coletivas, no anseio de satisfazer uma vida melhor aos envolvidos, tanto sob a ótica global de justiça, quanto de atendimento de necessidades.

A empatia, nesse toar, não só pode mobilizar um movimento de grupo para a preservação e eficácia dos direitos alheios, como é capaz de oferecer melhores condições de existências para aquelas que a praticam, alcançando sentimentos como felicidade e solidariedade. Importa observar, por outro viés, que a imaginação empática e as ações por ela guiadas não são suficientes para remediar todos os males que afetam a vida na contemporaneidade. Ela se mostra bastante frutífera para a evolução de processos vividos e para repensar a (des)construção de óbices à justiça social, cujo primeiro passo repousa na compreensão dos laços que nos unem na condição humana.

 

Referências

  • ALVES, Rubem. O amor que acende a lua. [S.l.]: Papirus, 2003. Disponível em: <https://docplayer.com.br/22651-O-amor-que-acende-a-lua-rubem-alves-http-groups-beta-google-com-group-digitalsource.html>. Acesso em: 17 mar. 2019.
  • KRZNARIC, Roman. O poder da empatia: a arte de se colocar no lugar do outro para transformar o mundo. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2015.
  • NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. Tradução de Fernando Santos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015.
  • NUSSBAUM, Martha. Fronteiras da Justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. Tradução de Susana de Castro. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
  • OXFAM BRASIL. A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras. Brasil: Brief Comunicação. Publicado em: 25 set. 2017. Disponível em: <https://www.oxfam.org.br/a-distancia-que-nos-une>. Acesso em: 07 jun. 2018.
  • SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
  • SOUZA, Pedro Herculano Guimarães Ferreira de; MEDEIROS, Marcelo. A concentração de renda no topo no Brasil, 2006-2014. International Policy Centre For Inclusive Grotwth. Publicado em: nov. 2017. Disponível em: <http://www.ipcig.org/pub/port/OP370PT_A_concentracao_de_renda_no_topo_no_Brasil.pdf>. Acesso em: 11 mar. 2019.

Notas:

[*] Ponencia presentada en el marco del Coloquio de Derechos Humanos del Departamento de Derecho UNS llevado a cabo en el mes de abril en 2019 en la UNS.

[1] Schirley Kamile Paplowski, Acadêmica do curso de Graduação em Direito pela UNIJUÍ (Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul). Bolsista na modalidade PIBIC/UNIJUÍ no projeto “Justiça Social: os desafios das políticas sociais na realização das necessidades humanas fundamentais”. E-mail: schirleykamile@hotmail.com

[2] Anna Paula Bagetti Zeifert, Doutora em Filosofia (PUCRS). Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado em Direitos Humanos – e do Curso de Graduação em Direito da UNIJUI. Integrante do Grupo de Pesquisa Cidades, Justiça Social e Sustentabilidade (CNPq). Coordenadora do projeto de pesquisa “Justiça Social: os desafios das políticas sociais na realização das necessidades humanas fundamentais” E-mail: annazeifert@yahoo.com.br

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