Resumo: O presente estudo visa trazer a discussão sobre a seletividade penal e a influência que a criminalização secundária exerce sobre ela. Analisando a forma com que essa seletividade ocorre, vislumbramos um interesse social/mercadológico em manter um sistema de classes em que a hegemonia das camadas superiores permanece imaculada, enquanto os pobres, não bem quistos, seguem em sua miséria, compondo o grosso das fileiras de encarcerados. Neste sentido, o racismo e a sua influência sobre a própria estrutura do corpo social apresenta-se como o elemento-chave na compreensão do sistema punitivo e prisional brasileiro, figurando como verdadeiro guia ao advento das políticas criminais que elegem não outro que não o negro, como seu cliente prioritário.
1 INTRODUÇÃO
O ordenamento jurídico pátrio conta hoje com centenas de tipos penais, desde crimes como o homicídio e o estelionato, previstos no Código Penal à exploração de jogos de azar e a prática de vias de fato, regulados pela Lei de Contravenções Penais. Isto posto, seria de se esperar que, ainda que houvesse mais pessoas presas pela prática de umas em relação às outras infrações, houvesse um certo equilíbrio. Todavia, não é isto que acontece na prática.
A população carcerária no Brasil, que hoje conta com mais de 800.000 pessoas[1] é composta de indivíduos condenados ou não pela prática de um número relativamente pequeno de tipos penais, reflexo de como se dão as políticas criminais no Brasil.
Esta concentração de prisões (e condenações) em determinados tipos penais não é um fenômeno espontâneo, mas marca de um sistema que elege a sua clientela, com base em estereótipos. A chamada criminalização secundária, realizada pelas forças policiais, Ministério Público etc., determina que tipos de delitos deverão receber sua atenção, e as características dos indivíduos a serem abordados e presos por sua suposta prática.
Os eleitos, não são outros que não os responsáveis pelo que o estudioso argentino Eugenio Raul Zaffaroni chama de “obras toscas da criminalidade”[2], ações grosseiras, geralmente associadas a delitos contra o patrimônio, como furto e roubo, ou o pequeno tráfico de tóxicos, realizados por pessoas pertencentes às camadas mais baixas da sociedade, geralmente, com pouca ou nenhuma educação.
Acrescenta-se a isso, ainda, o aspecto racial. O racismo, que não foi expurgado pela libertação dos negros escravizados, ainda no século XIX, apresenta-se entranhado na própria estrutura do Estado e do corpo social, influenciando e direcionando a forma com que estas políticas criminais se desenrolam, selecionando os povos de origem afro-brasileira como clientes preferenciais de um sistema marcadamente influenciado por uma lógica atuarial marcada pela contenção de riscos.
Esta realidade parece demonstrar a vitalidade de teorias como a de Evgeny Pashukanis[3], que considera que a política penal em todo sistema leva sempre as marcas dos interesses da classe que a tenha produzido. Realmente, a seletividade do sistema penal pátrio serve aos interesses das classes hegemônicas em manter seus privilégios, ao mesmo tempo que impede a inclusão social e econômica daqueles que vivem às margens da sociedade.
Isto posto, o presente artigo, por meio da revisão bibliográfica, busca lançar luz sobre as questões aqui trazidas. Busca-se atingir este intento, iniciando os estudos com uma análise da relação entre a criminalização secundária realizadas por certos atores sociais e jurídicos e a seletividade do nosso sistema penal e concluindo com o exame do papel do racismo na eleição da clientela deste sistema.
2 A CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA E A SELETIVIDADE PENAL
O Código Penal Brasileiro conta com mais de 360 artigos[4], dos quais, a maioria se presta à criminalizar condutas consideradas incompatíveis com a nossa ordem social, pelo legislador. Para além disso, existem outros diplomas legais, que também compõem o ordenamento jurídico brasileiro e trazem previsões de condutas criminosas, como por exemplo, a lei de crimes ambientais (Lei 9.605/98). Diante disto, pareceria razoável considerar que, a população carcerária nacional fosse igualmente plural, assim como acontece com a variedade de tipos penais.
Segundo dados do SISDEPEN (Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional)[5], o Brasil contava, em julho de 2022, com uma população carcerária de 830.714 pessoas, dentre homens e mulheres. Deste total, os tipos penais que mais levaram pessoas a esta situação de cárcere foram aqueles pertencentes aos crimes contra o patrimônio (303.410 pessoas) e os regulamentados pela lei de drogas (215.466 pessoas).
Diante destes números, é mister questionar o porquê do encarceramento no Brasil ser tão discrepante entre os diferentes tipos penais, concentrando-se, sobremaneira, em dois grupos de crimes. Isto se dá, principalmente, em razão de políticas criminais que acabam por eleger as condutas criminais que devem sofrer maior perseguição, fazendo assim com que o sistema criminal punitivo se torne seletivo não só quanto aos tipos penais mas, também, quanto ao estereótipo de criminoso a ser a capturado e preso.
O processo de criminalização se dá em dois momentos diferentes, com a criminalização primária e com a criminalização secundária. A primeira delas se manifesta por meio do “ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas”[6] . Neste processo, de elevada carga ideológica, o legislador, tomando por base seus valores e aquilo que acredita ser valioso à sociedade, elege os bens jurídicos que carecem de proteção e as condutas que não podem ser toleradas pelo direito penal.
Feito isto, parte-se, então, para o segundo momento que é a criminalização secundária. Enquanto na “fase” anterior está presente a característica da abstração, sem que este ou aquele indivíduo ou grupo seja objeto de ações persecutórias, aqui, conforme Zaffaroni[7], a persecução penal se dá sobre pessoas concretas. Uma vez posta, a lei penal, as agências de criminalização secundária, como a polícia e o Ministério Público acabam por escolher quem serão os destinatários das ações punitivas.
Para mais, as ações destes agentes e instituições que procedem com a criminalização secundária não se dá de forma espontânea e sem influência, os órgãos de imprensa e comunicação social desempenham importante papel na orientação da persecução criminal. Estes agentes, entendidos como empresários morais, podem ser comunicadores sociais, políticos e até mesmo líderes religiosos que gozem de audiência[8].
Os meios de comunicação em massa, como telejornais que se dedicam ao noticiário de prisões e ocorrências criminosas, intercalados, vez ou outra, por pretensos especialistas em segurança pública e outros demagogos de toda sorte, criam um estado de insegurança generalizado e apresentam como única alternativa para colocar termo a esta desordem cívico-jurídica o recrudescimento das ações policiais e o aumento do encarceramento dos não bem-quistos.
A professora Débora Pastana[9] chama este fenômeno de “indústria cultural do crime” e entende que:
Este tipo de criminologia vigarista sempre existiu e sempre se mostrou, em vários momentos históricos, ser uma das formas mais eficazes de dominação. Seu sucesso está em criar uma ideologia justificadora que faz com que todo ato autoritário seja visto como circunstancial e necessário. O que pode alterar sua configuração no tempo é o recurso comunicacional empregado e os estigmatizados por suas mensagens.
Neste diapasão, Zaffaroni[10] entende que há uma diferença considerável entre o número de infrações criminais ocorridas e a quantidade delas que chega ao conhecimento das autoridades policiais. Por isso, seria uma utopia acreditar em uma sociedade em que todos os delitos fossem identificados e punidos pelo sistema penal. Em razão disso, as forças de persecução elegem, com o apoio e influência dos empresários morais, os desvios que irão perseguir. Nesta altura, já ninguém mais se surpreende, que esta seleção seja movida por estereótipos e os alvos não serão outros que não aqueles integrantes de grupos sociais e étnicos já marginalizados.
É a partir deste ponto que se torna possível enxergar a razão de a maior parte dos encarcerados no Brasil estarem em semelhantes condições pelas práticas de delitos pertencentes a apenas dois grupos de infrações penais, enquanto outros ilícitos que violam bens jurídicos de igual ou maior relevância acabam não tendo a mesma atenção. Para Vera Andrade[11], por exemplo, isto ocorre, pois, o sistema penal se move contra pessoas e não contra as ações criminalizadas.
Estes delitos que mais aprisionam, referentes a infrações penais contra o patrimônio e o pequeno tráfico, regido pela lei de drogas, são chamados por Zaffaroni de “obras toscas da criminalidade”, por serem cometidos por pessoas com pouca formação escolar e advindas das camadas mais pobres da população. Inobstante, os dados trazidos pelo SISDEPEN confirmam esta teoria, vez que, parcela considerável dos detentos nos presídios brasileiros não tem, sequer, o ensino fundamental[12]. Soma-se a isso, ainda, o critério racial, vez que, os mesmos dados nos mostram que pretos e pardos são a maioria dentre os encarcerados. Este entendimento é também presente nos escritos de Baratta[13], para quem:
As maiores chances de ser selecionado para fazer parte da “população criminosa” aparecem, de fato, concentradas nos níveis mais baixos da escala social (subproletariado e grupos marginais). A posição precária no mercado de trabalho (desocupação, subocupação, falta de qualificação profissional) e defeitos de socialização familiar e escolar, que são característicos dos indivíduos pertencentes aos níveis mais baixos, e que na criminologia positivista e em boa parte da criminologia liberal contemporânea são indicados como as causas da criminalidade, revelam ser, antes, conotações sobre a base que o status de criminoso é atribuído.
Diante disto, está posto o perfil do criminoso a ser perseguido e encarcerado pelo direito penal pátrio: o negro, pobre e com pouca ou nenhuma educação. Tal realidade, certamente, está em consonância com as estruturas de poder que visam manter este tipo de gente exatamente como está: marginalizada e perseguida.
Alessandro Baratta ao falar da justiça penal, pondera que tem esta,
Função de reprodução das relações sociais e de manutenção da estrutura vertical da sociedade, criando, em particular, eficazes contra estímulos à integração dos setores mais baixos e marginalizados do proletariado, ou colocando diretamente em ação processos marginalizadores.
Noutras palavras, para além de proteger bens jurídicos sensíveis e que demandam maior cuidado do legislador, o direito penal serve para manter as relações de poder, desestimulando ações que visem a integração social dos marginalizados e agindo diretamente sobre eles, mantendo e reforçando a sua exclusão, criando estereótipos e o perfil do não bem quisto, o criminoso a ser perseguido e enclausurado.
Em sentido complementar, estabelece Alessandro Di Giorgi[14] que,
El sistema penal es parte de esos aparatos ideológicos del Estado […] encargados de reproducir la relación hegemónica entre clases sociales y perpetuar la estructura del poder. Es por ello que las transformaciones históricas y contemporáneas del campo penal solo pueden ser comprendidas si se vinculan las ideologías dominantes de la ley y el orden.
Ademais, o Poder Judiciário que, em tese, poderia atuar de forma diversa às agências secundárias, coibindo excessos em suas ações e buscando realizar julgamentos onde princípios como a igualdade e isonomia fossem o mister, ao contrário, se imiscuem nesse movimento, deixando questões caras a qualquer julgamento proferido em um sistema democrático como a imparcialidade de lado, em prol de uma sanha condenatória, respondendo a argumentos como a “vontade das ruas” ou o “anseio popular”.
Conforme Rubens Casara[15], vivemos no que que ele chama de um “Estado pós-democrático. Para ele,
O Poder Judiciário pode (e deve) julgar em sentido contrário ao desejo de todos os demais, isso porque, como já foi dito, os direitos fundamentais funcionam como trunfos contra as maiorias de ocasião e cabe aos juízes assegurarem não só esses direitos como também a própria democracia em sentido substancial/constitucional. Na pós democracia, o poder do Judiciário direciona-se a coisa diversa. No Estado Pós-Democrático, o que importa é assegurar os interesses do mercado e da livre circulação do capital e das mercadorias, com o controle ou mesmo a exclusão dos indivíduos disfuncionais, despidos de valor de uso ou inimigos políticos.
Por fim, o papel do julgador que deveria ser de neutralidade e equidistância entre defesa e acusação acaba perdendo o sentido. O que se busca, não é mais um julgamento justo, mas um que agrade ao mercado, um que permita o contínuo desenvolvimento de um Estado que vive sob o jugo do capital e somente a ele presta contas.
3 O RACISMO ESTRUTURAL E SEUS REFLEXOS NA SELETIVIDADE CRIMINAL
O Brasil, desde a sua gênese, é composto por diferentes povos de diferentes culturas, sendo marcado pela confluência de etnias, religiões e até mesmo de diferentes línguas. Todavia, nem todos os grupos que contribuíram para esta realidade multiétnica e multicultural foram vistos e tratados da mesma forma ao longo da nossa história, e isto, tem impactos ainda hoje na forma com que o sistema penal pátrio seleciona a sua clientela.
Segundo Argolo, Duarte e Queiroz[16], seria possível verificar três momentos na discussão a respeito de criminalidade e racismo. A primeira delas, teria início com o surgimento da criminologia como ciência, em que seus estudiosos, oriundos da Escola Positivista, acreditavam que os afrodescendentes, junto dos indígenas, seriam povos mais propensos à criminalidade em razão de pertencerem a grupos sociais inferiores.
O segundo momento, por sua vez, tem como marco temporal os anos 1960, quando ocorre um deslocamento do paradigma etiológico para o paradigma da reação social, dentro dos estudos criminológicos. Aqui há um importante processo de denúncia da violência e das condições de vida nos presídios, bem como o racismo e a própria razão de ser do sistema criminal[17].
O terceiro momento, por fim, é notado como um paradoxo. Aqui, coexistem a defesa de institutos despenalizadores, que levem a diminuição do encarceramento, com o aumento do número de pessoas cumprindo penas que resultam ou não em cárcere e o retorno à seletividade penal contra os mesmos grupos que são objetos destas políticas. Discursos marcadamente racistas se tornam raros, contudo, a discriminação baseada em critérios raciais permaneceu[18].
Sob este aspecto, é possível notar que estes mecanismos que visam (em tese) diminuir o número de encarcerados, não passam de um engodo. Ainda que seja permitido há alguns cumprirem suas penas em regimes diversos do fechado e a outros realizar a composição civil dos danos causados, por exemplo, a busca pela apreensão e condenação de certos indivíduos não sofre qualquer diminuição. Conforme os números trazidos pelo SISDEPEN[19], a maior parte dos encarcerados no Brasil, continua a ser de negros e pardos.
Certamente, o tratamento desigual para com as populações afro-brasileiras não é um fenômeno atual. Depois de séculos de escravidão onde o que se buscava era “coordenar os corpos, conformá-los ao trabalho compulsório e, finalmente, naturalizar o lugar de subserviência”[20], a sua libertação não fez com que essas pessoas fossem inclusas socialmente, ao contrário, permaneceram em estado semelhante ao que se encontravam, a época da escravidão: explorados e tratados como seres humanos inferiores.
Com o fim da escravidão, numa tentativa eugenista de “embranquear” a população brasileira, foi incentivada a vinda de imigrantes europeus, que recebiam benefícios para que eles e suas famílias aqui se instalassem. Do outro lado, os brasileiros de origem africana foram largados a própria sorte, política alguma foi criada para integrar à sociedade aquela enorme massa de trabalhadores recém libertos[21].
Com esse ostracismo perpetrado pelo próprio Estado, a população negra encontrou dificuldades para encontrar ocupações dentro da legalidade, vez que, o sistema penal, sempre seletivo, punia atividades exercidas na informalidade, única espécie que restara a estes excluídos, aqui, estava formada a maior clientela do sistema penal punitivo[22].
É nesta esteira que surge o que se convencionou a chamar de racismo estrutural. Aqui, nota-se, que o racismo não desapareceu com o fim da escravidão, ao contrário, ele permaneceu presente como:
Decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção[23].
O racismo, portanto, não é um fenômeno restrito apenas ao campo social, ele está entranhado em todas as estruturas do corpo social, inclusive nas agências de criminalização. Além disso, Sílvio Almeida[24] acrescenta que o racismo se manifesta na desigualdade econômica e também jurídica, ou seja, ainda que a Constituição Federal tenha um dispositivo que verse expressamente sobre a igualdade de todos, esta igualdade não é material, e isso pode ser demonstrado em números.
Segundo uma pesquisa realizada em 2022 pelo CESEC (Centro de Estudos de Ciência e Cidadania), o percentual relativo ao número de pessoas com a pele negra já abordados pela polícia chega a 63%, contra 21% dos de pele branca, na cidade do Rio de Janeiro. No tocante àqueles que sofreram abordagens policiais mais de dez vezes, 63% são negros ou pardos. Estes dados devem ser analisados, tendo em vista que, a referida cidade conta com um percentual de negros em sua população, de 48%, frente a 51% de brancos[25].
Além disso, outros números que importam a esta discussão são os trazidos pelo CONDEGE (Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais). Em relatório publicado em 2021, dentre as pessoas identificadas por meio de reconhecimento fotográfico realizado nas delegacias e, posteriormente inocentadas, 83% eram de pele negra[26].
Sobre a abordagem policial, o próprio Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre a influência do racismo estrutural e da seletividade causada por ele, nas forças de persecução criminal:
Em um país marcado por alta desigualdade social e racial, o policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos, como idade, cor da pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc.[27]
Conforme preleciona Adilson Moreira,
Sendo o racismo um tipo de dominação social que procura manter o poder nas mãos do grupo racial dominante, suas formas de legitimação precisam também se modificar, pois suas práticas excludentes são sempre questionadas. Seu aspecto dinâmico permite que seus meios de operação sejam encobertos, de modo que relações hierárquicas possam ser explicadas a partir das características dos membros de minorias raciais e não a partir de estratégias de dominação[28].
Desta forma, o racismo interfere explicitamente na forma com que as políticas criminais são planejadas e executadas. Alvos preferenciais das abordagens policiais, os negros carregam consigo o estereótipo do criminoso, aquele que, ante a incerteza da autoria ou até mesmo da materialidade de um delito, acaba abordado e detido. Aqui, aparece uma espécie de in dubio pro societate, executado ao arrepio da lei, em prol de um ideal de controle de riscos proveniente de um modelo de justiça atuarial[29].
Nesta lógica atuarial, bastante condizente com o sistema neoliberal, adota-se uma lógica de mercado, em que, o sucesso, está baseado em números: números de apreensões, números de prisões, números de condenações. Conforme Casara[30], neste aspecto, o indivíduo é esvaziado, massificado e coisificado, torna-se apenas mais um número. Assim, em uma política de controle de riscos e produção de resultados, o aparelho punitivo estatal deve escolher sua clientela: pobres, sem educação e, principalmente, negros.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do Texto Constitucional de 1988 são referenciados vários princípios fundamentais a construção de uma vida pautada pela dignidade, dentre eles, a igualdade e a isonomia. Infelizmente, estes preceitos constitucionais não vem sendo observados principalmente quando se toma por base a justiça criminal e a forma com que se procede com a criminalização de certas condutas.
No processo de criminalização, a lei penal é direcionada a certos grupos e a certos tipos penais. Muitas vezes, influenciadas por personalidades que gozam de boa audiência junto ao público, as agências de criminalização secundária criam o perfil estereotipado do criminoso a ser perseguido.
As vítimas deste processo são, em sua maioria, pessoas de origem afro-brasileira, com baixa escolaridade e oriundas das camadas mais pobres da população, responsáveis pela prática de infrações penais grosseiras como o furto, roubo e o pequeno tráfico de drogas.
Parcela considerável destas prisões e condenações poderia ser evitada com medidas diversas da criminalização, como a legalização do uso e venda de certos tipos de substâncias, assim como vem sendo feito em outros países. Ou, ainda, investimentos a fim de incluir socialmente aqueles marginalizados que acabam tendo de recorrer a pequenos furtos para ter o que comer.
Infelizmente, não se vislumbra qualquer adesão estatal e mesmo social à proposições como estas. É preciso que se eleja alguém que justifique o próprio sistema penal, alguém que vá ser perseguido, preso e depois condenado. Esta lógica, tira das ruas milhares de indesejáveis, de não bem quistos pelas camadas mais abastadas da sociedade. É salutar também a uma ordem econômica que busca o crescimento econômico irrefletido e a manutenção da hegemonia de certas classes sociais, que estas pessoas que pouco podem contribuir para este sistema, continuem marginalizadas.
Por fim, o racismo não é uma questão superada, mas componente da própria estrutura social brasileira. Identificar negros e pardos como a maioria dentre os encarcerados no Brasil apenas demonstra que estamos, ainda, a uma distância significativa do fim dos preconceitos e da execução de uma verdadeira justiça social.
REFERÊNCIAS
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Notas:
[*] Ronaldo Silva Dimas é Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Advogado, especialista em Ciências Criminais pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva – CERS e em Direitos Humanos e Realidades Regionais pelo Faculdade CESUMAR – UNICESUMAR. Bolsista de pós-graduação pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG.
[1] BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional – SISDEPEN. 12º Ciclo – INFOPEN, 2022. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios-e-manuais/relatorios/relatorios-analiticos/br/brasil-junho-2022.pdf. Acesso em: 12 de jan. 2023.
[2] ZAFFARONI, Eugênio Raul; BATISTA, Nilo. Direito penal Brasileiro – I. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, p. 47.
[3] PACHUKANIS, Evguiéni Bronislávovitch. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988.
[4] BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.. Rio de Janeiro|: Planalto, [1940]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 15 jan. 2023.
[5] BRASIL, op. cit., 2022.
[6] ZAFFARONI; BATISTA, op. cit., p. 43.
[7] ZAFFARONI; BATISTA, op. cit.
[8] Idem.
[9] PASTANA, Débora Regina. Política e punição na América Latina: Uma análise comparativa acerca da consolidação do estado punitivo no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: Revan, 2019.
[10] ZAFFARONI; BATISTA, op. cit.
[11] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003.
[12] BRASIL, op. cit., 2022.
[13] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p.165
[14] GIORGI, Alessandro Di. Cárcel y estrutura social em las sociedades tardocapitalistas. In: ANITUA, Gabriel Ignacio. La privación de la liberdad: una violencia practica punitiva. Buenos Aires: Didot, 2016. p. 73.
[15] CASARA, José Rubens. O estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 93.
[16] ARGOLO, Pedro; DUARTE, Evandro Piza; QUEIROZ, Marcos Vinicius Lustosa. A Hipótese Colonial, um diálogo com Michel Foucault: a Modernidade e o Atlântico Negro no centro do debate sobre Racismo e Sistema Penal. Universitas Jus, v. 27, n. 2, 2016.
[17] ARGOLO; DUARTE; QUEIROZ, op. cit.
[18] Idem.
[19] BRASIL, op. cit., 2022.
[20] FLAUZINA, Ana Luiza. Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. p. 57.
[21] AMARAL, Augusto Jobim do; VARGAS, Melody Claire Schmidt. Necropolítica, racismo e sistema penal brasileiro. REVISTA DE DIREITO (VIÇOSA), 2019.
[22] FLAUZINA, op. cit.
[23] ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
[24] Idem.
[25] RAMOS, Silvia; et al. Negro trauma: racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: CESeC, 2022. E-Book.
[26] RIO DE JANEIRO (Estado). Conselho Nacional dos Defensores Públicos Gerais. Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça. Relatório Sobre Reconhecimento Fotográfico Em Sede Policial. Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: https://trello-attachments.s3.amazonaws.com/5ed9417e30b44d560232a308/60772821f2f8e58a1b92f563/a9a3f1f6a00bf3b6dbfb4dc9ba61ea79/Relat%C3%B3rio_CONDEGE_-_DPERJ_reconhecimento_fotogr%C3%A1fico.pdf. Acesso em 15 jan. 2023.
[27] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). Recurso Em Habeas Corpus Nº 158580 – BA. Recurso Em Habeas Corpus. Tráfico De Drogas. Busca Pessoal. Ausência De Fundada Suspeita. Alegação Vaga De “Atitude Suspeita”. Insuficiência. Ilicitude Da Prova Obtida. Trancamento Do Processo. Recurso Provido. Recorrente: Mateus Soares Rocha. Recorrido: Ministério Público do Estado da Bahia. Relator: Ministro Rogerio Schietti Cruz, 19 de abril de 2022. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=151144910®istro_numero=202104036090&peticao_numero=&publicacao_data=20220425&formato=PDF. Acesso em 13 jan. 2023.
[28] MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
[29] FORMIGA, Glêides Simone de. A cor vigiada: uma crítica ao discurso racializado de prevenção ao crime. 2010. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade de Brasília, Brasília, 2010.
[30] CASARA, ibidem.