A ficção do contraditório no processo penal Por Milton Jordão

Introdução

 O Brasil tem incorporado em seu Texto Maior garantias fundamentais que servem para nortear os cidadãos contra investidas injustas e arbitrárias das autoridades públicas. No âmbito do processo penal, três delas se revelam imprescindíveis : o contraditório, a ampla defesa e a igualdade de partes (ou par conditio). Em verdade, são as relevantes expressões do Estado Democrático de Direito, muito embora, a praxe forense revele que estas garantias  têm existido formalmente, não sendo cumpridas plenamente, em muitos casos. Como assevera Afrânio Silva Jardim2 estes pisoteamentos dos princípios afetam e muito a estrutura do sumário, comprometendo a existência material das garantias constitucionais.
Verifica-se que há uma necessidade de se delinear onde começa o contraditório no Sumário de Culpa, para assim estabelecer a igualdade de partes e a ampla defesa, que prevê o Estatuto Maior.

1. O SISTEMA ACUSATÓRIO NO CPP.

O Código de Ritos Penais traz consigo todos os passos necessários que compõem o iter processual, desde o despacho ordenando a citação do acusado até o início real do processo com o interrogatório do acusado. Citado, o mesmo já deve buscar um advogado para preparar sua defesa, materializando assim as aludidas garantias, se preso estiver, deverá indicar algum ou esperar a nomeação de um defensor pelo Juiz.
Como se nota, o sistema acusatório dá amplitude de defesa, tendo cada parte uma oportunidade igual. Como se infere, estes princípios possibilitam o equilíbrio da relação processual, tornando o feito mais democrático. Temos que observar que não são princípios do réu, e sim do Direito Processual, pois para este "da mesma forma que não serve aos interesses sociais a absolvição de um culpado, jamais poderá interessar ao Estado a condenação de um inocente"3, como se nota, a postura de Defesa Social também incorpora a processo penal.
O interesse maior do Estado é de zelar pela boa prestação jurisdicional sem causar males aos que não infringiram a lei, em tese. Nisso o contraditório exsurge como indispensável ao feito processual, pois "é forçoso reconhecer que, por tal princípio, reflete-se um dever ser que reclama (exige) a dialética do processo de partes, ou seja, o diálogo entra acusação e a defesa, perante um juiz imparcial"4.

2. O RÉU E SEU DEFENSOR.

Uma das condições necessárias para o prosseguimento da ação penal é a existência da Defesa Técnica, realizada por profissional habilitado. A autodefesa é permitida até o interrogatório, contudo, é inválida ao longo do processo, ao menos se o acusado for habilitado; porém, na prática muito pouco se vê. A defesa técnica é indispensável, sendo "mais do que uma garantia, é condição de paridade de armas, imprescindível à concreta atuação do contraditório e, conseqüentemente, à própria imparcialidade do juiz"5.
Para que se tenha a verdadeira existência do princípio do contraditório é mister que haja contato entre réu e seu defensor. Inclusive, até antes mesmo de seu interrogatório. O art. 5o, inc. LXIII, da CF/88, assegura ao preso assistência ao advogado, e a toda pessoa submetida ao interrogatório, o que impulsiona a seguinte conclusão : para que se tenha perfeito o contraditório, sem prejuízo para a defesa, deve estar o réu acompanhado de seu advogado- seguimos mais adiante, deve ter prévio contato antes mesmo desta audiência- seja ainda  na Polícia como em Juízo6.
O exposto no artigo 366 do CPP também é de relevância dentro deste questionamento. A nova redação conferida pela lei 9.271/96, alterou o artigo, passando a dispor que se não for encontrado o réu (após citação editalícia), o processo é suspenso até que o encontre. O prazo prescricional é suspenso assim que é decretada a revelia. Nesta nova postura legal somente aqueles crimes cometidos após a promulgação da lei estão sob sua égide7. Não deixa a acusação desprevenida com a suspensão do prazo prescricional, dá à Defesa a suspensão do feito processual, sendo assim mantidas as garantias processuais-constitucionais.
Esta lei foi inspirada por razão constitucional, era injusto julgar-se alguém sem que tivesse ciência, é distinto do réu que devidamente intimado, comparece, e desaparece. Também, há de se notar que se o acusado nem mesmo aparece para ser julgado, quiçá para cumprir a pena, melhor é suspender o feito processual para uma apreciação no futuro, bem mais justa8.
Portanto, como se pode ver é imprescindível a garantia do contraditório, para que  sejam balanceadas as forças das partes, não basta somente que se apresente perante o Juiz e relate, mesmo sendo aquele imparcial, deve estar acompanhado de seu advogado e instruído previamente pelo mesmo para que realmente se tenha estabelecido no processo o contraditório.
No Brasil, como a maioria dos acusados da Justiça Criminal são de baixa renda, não tendo condições de arcar com honorários advocatícios, estes sofrem muito com o desrespeito de suas garantias. Infelizmente, há uma falta de estrutura para prover este serviço. Geralmente, o acusado é interrogado, não tem advogado, e é nomeado o Defensor Público- quando existe na Comarca- e este só tem contato com aquele no dia da próxima audiência- de oitiva de testemunhas da Denúncia (!). Ora, há contraditório nesta hipótese? E a igualdade de armas? Fica patente que não, daí pensarmos que só dever-se-ia considerar o contraditório quando, pelo menos,  presente o defensor do acusado no seu interrogatório.
Fica difícil patrocinar a defesa de alguém se não se tem contato com a mesma, por isso, assim que alguém, ainda indiciado fosse denunciado, deveria o Juiz de Direito, em não tendo advogado constituído pelo acusado, oficiar à Defensoria Pública ou nomear Defensor dativo para o interrogatório.
Destarte, deve-se seguir na batalha pela mantença dos direitos do réu de ser devidamente defendido, para consolidar o due process of law e os seus princípios constituidores sustentado na CF/88. Para se ter o contraditório no processo, deve o acusado estar previamente acompanhado de seu defensor, e não tê-lo nomeado após o interrogatório.

3. NECESSIDADE GARANTISTA DE UM "CONTRADITÓRIO MATERIAL".

 Como fora exposto nos tópicos anteriores os princípios da ampla defesa, par condicio, e contraditório- os principais analisados aqui- são para o cidadão garantias constitucionais. Dentro desta ótica, em momento algum, poderiam deixar de se fazer presentes no processo penal. Porém, a prática não demonstra isso, na maioria dos casos.
"De ato, de nada servem declarações de direitos fundamentais estabelecidas ao nível mais alto dos ordenamentos se a sociedade não dispuser de mecanismos capazes de torná-los efetivos"9. A postura ante o quadro a atua deve ser emergente, a crise que ultrapassa o sistema judiciário deve ser combatida com a diminuição do seu poder, e a efetivação das garantias do cidadão. A luta no âmbito do processo penal deve ser no sentido de se fazer mas vivo o contraditório, que é a melhor forma de apurar a verdade do fatos em apreço.
O sistema garantista parte da noção meta-teórica dos direitos fundamentais do cidadão, da anterioridade de  sua existência e da sociedade em relação ao Estado- que produto daqueles e deve lhes servir, e não o contrário10. Então, deve-se garantir o pré-estabelecido, retirando assim o poder repressivo do Estado, mais relevante na questão criminal. Nesse sentido, o direito fundamental é explicitado e positivado na Constituição, o contrato social escrito, e deve se impor, independente da vontade da maioria.
Luigi Ferrajoli, citado pelo argentino Grabiel Anitua, assevera que  "El contradictorio, de hecho, consiste en la confrontación públic
a y antagónica, en condiciones de igualdad entre las partes. Y ningún juicio contradictorio existe entre partes que, más que contender, pactuán entre sí en condiciones de desigualdad"11. Como se nota para êxito do garantismo é mister que o sistema seja amplo à defesa e contraditório, nunca deve-se optar por vias que fujam destas características. A defesa é instituto consagrado, e a dialética no processo também, não devendo ser esquecidas, como se pode observar a existência do contraditório no sumário deve ser perene.
A simples inclusão do contraditório no texto constitucional não é razão de comemorações, contudo, a sua materialização no cotidiano forense é sinal de mudanças na sociedade brasileira.

4. Conclusões

Portanto, ficou demonstrado que é importante para assegurar os direitos fundamentais, em especial aqueles atinentes ao processo penal, que se lute contra as "praxes" que são anti-garantistas, fruto de desleixo e má vontade social. O contraditório deve ser desenvolvido plenamente para que se tenha um processo efetivo e válido, desde o primeiro contato réu-defensor, antes de que o primeiro tenha sido exposto ao contato com o próprio Juiz, para assim estabelecer a existência do contraditório- assim, por conseguinte, a presença dos demais princípios estará assegurada.
Ficou evidenciado que a igualdade de direitos, na seara penal, entre distintas classes não existe, em que pese a CF/88 afirmar o contrário. A materialização destas garantias é  a meta a ser perseguida, pois a alteração no panorama atual do Brasil só ocorrerá quando sobrevierem do mundo ideal à realidade aquilo que está perpetrado como direito fundamental do cidadão brasileiro. Porém, somente com a luta dos que formam a sociedade pode-se fazer isso.
Na seara processual penal ficou exarado que somente poderá ser considerado perfeito o sumário em que houver a constatação do contraditório, de outra forma, temos nulidade. E, só quando o réu se faz acompanhado de seu defensor desde o primeiro instante, têm ratificado o tal princípio.

Notas
1 O autor é acadêmico em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSal) e Coordenador do !TEC-BA, e-mail : itec.ba@terra.com.br .
2 JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal, pg. 42.
3 JARDIM, Afrânio Silva. Ob. Cit., pg. 326
4 COUTINHO, Jacinto Nelson M. de Miranda. "Introdução aos princípios gerais do direito processual penal brasileiro", pg. 11. 
5 GRINOVER, FERNANDES & GOMES FILHO. As Nulidades no processo penal, pg. 77
6 GRINOVER, FERNANDES & GOMES FILHO, Antônio M., ob. Cit., pg. 82/83.
7 JESUS, Damásio E. de. "Revelia e Prescrição penal", Revista Consulex, ano III, n. 17, pg. 35 a 37.
8 GRINOVER, FERNANDES & GOMES FILHO. Ob. Cit.,  pg. 103;
9 CADEMARTORI, Sérgio e XAVIER, Marcelo Coral. "Apontamentos  iniciais acerca do garantismo", Boletim do ITEC, ano I, n.04, pg. 01.
10 CADEMARTORI, Sérgio e XAVIER, Marcelo Coral. Ob. Cit., pg. 4
11 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Pg. 748. Citação feita pelo autor no artigo "En defensa del juicio – Comentario sobre el juicio penal abreviado y el arrepentido". IX Congreso Iberoamericano y IX Latinoamericano de Derecho Penal y Criminología. Pg. 42/43