Súmula 444 do Superior Tribunal de Justiça: uma vitória do garantismo penal. Por Viviani Gianine Nikitenko

Resumo: o presente texto apresenta a súmula 444 aprovada pelo Superior Tribunal de Justiça como uma vitória do garantismo penal, eis que fez a opção por um processo penal respeitador de todas as garantias processuais de um devido processo legal condizente com um processo penal como instrumento da tutela da liberdade do cidadão, especialmente na interpretação do conceito de maus antecedentes criminais quando do momento da dosimetria da pena, afastando, diante do princípio da presunção de inocência, a possibilidade de que inquéritos e ações penais em curso sirvam como fundamento de majoração da pena.

 

Palavras-chave: processo penal instrumental; princípio da presunção de inocência; maus antecedentes; súmula 444 STJ; garantismo.

 

COSIDERAÇÕES INICIAIS

 

O Superior Tribunal de Justiça, na contramão de um Direito Penal e Direito Processual Penal máximo, representado por constantes ondas punitivistas, eivadas de Direito Penal do autor, aprovou a súmula 444 consagrando o entendimento de que “É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base.”

 

O presente texto pretende apresentar, no cenário da aprovação da referida súmula pelo Superior Tribunal de Justiça, a vitória daqueles que lutam por um processo penal instrumental e garantista. Para tanto, a primeira parte do trabalho preocupa-se em demonstrar o processo penal como instrumento de tutela da liberdade do cidadão, assegurando a esse todos os princípios e garantias decorrentes do princípio do devido processo legal. Num segundo momento, busca-se à análise específica do princípio da presunção de inocência, desdobramento do princípio do devido processo legal, considerado como reitor do processo penal, que exige o tratamento de inocente ao acusado, frente à pretensão punitiva do Estado, até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Posteriormente, centra-se na abordagem da problemática relacionada aos maus antecedentes quando da aplicação da pena. Para, finalmente, apresentar o entendimento sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça quanto à consideração dos maus antecedentes criminais.

 

1 PROCESSO PENAL COMO INSTRUMENTO DA TUTELA DE LIBERDADE DO CIDADÃO

 

Com a consolidação do pensamento jurídico-liberal, o processo penal redirecionou o seu foco de mero instrumento de realização da pretensão punitiva do Estado[1] para se transformar em um instrumento da tutela da liberdade do cidadão. Surgia a necessidade de compatibilização/equilíbrio entre o direito de punir do Estado e a necessidade de tutela dos direitos e garantias fundamentais[2]. Nas palavras de Ferrajoli,

 

(…) podemos identificar os valores da jurisdição penal com a imunidade dos cidadãos contra o arbítrio e a intromissão inquisitiva, com a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, com a dignidade da pessoa do imputado e, portanto, também com o respeito à sua verdade. Isso supõe, obviamente, que se conceba o direito penal não mais apenas como instrumento de prevenção de delitos, mas também (…) como técnica de minimização da violência e do arbitrário na resposta ao delito. Coerentemente com tais finalidades, o escopo justificador do processo penal se identifica com a garantia das liberdades do cidadão, mediante a garantia da verdade – contra o abuso e o erro. (2002, p. 503).

 

            O processo penal, segundo Dinamarco (1990), passa a ser representado por uma visão liberal de jurisdição, como um meio de tutela do indivíduo frente aos possíveis abusos ou desvios do poder dos agentes estatais.

 

Neste contexto, estabelece Lopes Jr., o processo penal surge como “… uma limitação jurídica do poder de perseguir e punir.” (2010, p. 3).

 

            No entendimento de Andrade

…exigência de segurança individual contra a arbitrariedade do Príncipe (poder punitivo), e sua preocupação central é a instauração de um regime estrito de legalidade (Penal e Processual Penal) que evite toda incerteza do poder punitivo, ao mesmo tempo em que promova a sua humanização e instrumentalização utilitária. (1997, p. 49-50).

 

            Dessa forma, segundo Lopes Junior (2009a), para que o Estado desenvolva seu monopólio de aplicação de pena ao agente infrator dos mandamentos penais é preciso que sua atividade se desenvolva através de um processo penal válido (ou seja, devido processo legal), assegurando ao acusado todas as garantias inerentes a esse devido processo legal (direito à ampla defesa, ao contraditório, ao silêncio, à produção de provas, à presunção de inocência). Nas palavras do autor:

O processo, como instrumento para a realização do Direito Penal, deve realizar sua dupla função: de um lado, tornar viável a aplicação da pena, e de outro, servir como efetivo instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais, assegurando os indivíduos contra os atos abusivos do Estado. Nesse sentido, o processo penal deve servir como instrumento de limitação da atividade estatal, estruturando-se de modo a garantir plena efetividade aos direitos individuais constitucionalmente previstos, como a presunção de inocência, contraditório, defesa, etc. (2010, p. 10).

 

 

2 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

 

O princípio da presunção de inocência surge neste contexto de necessidade de proteção dos inocentes frente à atuação do poder punitivo do Estado. Trata-se de princípio estruturador/reitor de todo o processo penal moderno, podendo, inclusive, ser considerado um dos desdobramentos do devido processo legal, exigindo ao acusado a efetivação de garantias mínimas para que esse possa resistir à acusação estatal, sem que sua liberdade seja restringida de forma arbitrária[3].      

 

Nas palavras de Ferrajoli, “Esse princípio fundamental de civilidade representa o fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado.” (2002, p. 506).

          

O princípio da presunção de inocência segundo Ferrajoli (2002) remonta ao Direito romano, tendo sido na Idade Média esquecido, mas reafirmado na Idade Moderna, sobretudo pela inspiração Iluminista de reação ao sistema persecutório do regime anterior[4].

 

Foi positivado pela primeira vez na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 – “Art. 9º. Todo homem presume-se inocente enquanto não houver sido declarado culpado; por isso, se se considerar indispensável detê-lo, todo rigor que não seria necessário para a segurança de sua pessoa deve ser severamente punido pela lei.”

          

No Brasil, embora somente explícito na Constituição Federal de 1988, o princípio da presunção de inocência já era tratado pela doutrina e pela jurisprudência brasileira, sobretudo, após a adesão do Brasil à Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, que, em seu art. 11, nº 1, incluiu a garantia de que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se prove sua culpabilidade, conforme a lei e em juízo público no qual sejam asseguradas as garantias necessárias à defesa.”

 

            A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto São José da Costa Rica) também tratou da matéria no seu art. 8º, nº 2, afirmando que “toda a pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.”

 

            A Constituição Federal de 1988 estabeleceu o princípio da presunção de inocência no rol dos Direitos e Garantias Fundamentais assegurando que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.” (art. 5º, LVII).

 

O princípio da presunção de inocência reconhece ao acusado um estado transitório de não-culpabilidade, permanecendo, assim, o suposto autor do delito com o status de inocente enquanto não transitar em julgado sentença penal condenatória. De acordo com Lopes Jr., “Enquanto dura o processo, dura a incerteza, até que se pronuncie a sentença.” (2010, p. 10-1).

 

Pode-se estabelecer quatro aspectos relacionados ao princípio da presunção de inocência[5]: 1) referente à regra probatória; 2) referente ao momento da valoração probatória; 3) referente à imposição de qualquer espécie de prisão cautelar ao acusado ou investigado; 4) referente ao paradigma de tratamento do acusado durante o inquérito policial e o transcorrer do processo.

          

 Procede-se à análise de cada um desses aspectos:

 

1) Referente à regra probatória – tendo em vista a garantia assegurada ao suposto autor da infração penal de sua inocência, o ônus de provar os fatos que lhe são imputados é da acusação (Ministério Público ou querelante). Assim, segundo Ferrajoli, “A culpa e não a inocência, deve ser demonstrada, e é a prova da culpa – ao invés da de inocência, presumida desde o início – que forma o objeto do juízo.” (2002, p. 505-6).

 

2) Referente ao momento da valoração probatória – como o ônus da prova da materialidade da infração e de sua autoria cabe ao titular da pretensão punitiva, caso após a produção das provas restar alguma dúvida, o juiz deve aplicar um princípio decorrente do princípio do estado de inocência, o princípio do in dubio pro reo, sendo que a dúvida sempre deve ser resolvida a favor do réu. Para Ferrajoli

 

Se a jurisdição é a atividade necessária para obter a prova de que um sujeito cometeu um crime, desde que tal prova não tenha sido encontrada mediante um juízo regular, nenhum delito pode ser considerado cometido e nenhum sujeito pode ser reputado culpado nem submetido a pena. Sendo assim, o princípio da submissão à jurisdição – exigindo em sentido lato, que não haja culpa sem juízo (axioma A7), e, em sentido estrito, que não haja juízo sem que a acusação se sujeite à prova e à refutação (Tese T 63) – postula a presunção de inocência do imputado até prova contrária decretada pela sentença definitiva de condenação. (2002, p. 505).

 

 

            3) Referente à imposição de qualquer espécie de prisão cautelar ao acusado ou investigado – a circunstância de acusado ou investigado no processo penal ou inquérito policial já traz constrangimento à pessoa, assim, diante da presunção de sua inocência, as medidas de restrição de sua liberdade somente devem ser adotadas em caráter de exceção. A regra, no Estado Democrático de Direito é a liberdade e, somente em caráter de exceção, anterior ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória, se admite a restrição de liberdade do acusado ou investigado quando efetivamente necessárias. De acordo com Lopes Jr. “Essa opção ideológica (pois eleição de valor), em que se tratando de prisões cautelares, é da maior relevância, pois decorre da consciência de que o preço a ser pago pela prisão prematura e desnecessária de alguém inocente (pois ainda não existe sentença definitiva) é altíssimo, ainda mais no medieval sistema carcerário brasileiro.” (2009b, p. 53).

 

            Ainda,

 

as exigências do processo penal são de tal natureza que induzem a colocar o imputado em uma situação absolutamente análoga ao de condenado. É necessário algo mais para advertir que a prisão do imputado, junto com sua submissão, tem, sem embargo, um elevado custo? O custo se paga, desgraçadamente em moeda justiça, quando o imputado, em lugar de culpado é inocente, e já sofreu, como inocente, uma medida análoga à pena; não se esqueça de que, se a prisão ajuda a impedir que o imputado realize manobras desonestas para criar falsas provas ou para destruir provas verdadeiras, mais uma vez prejudica a justiça, porque, ao contrário, lhe impossibilita de buscar e de proporcionar provas úteis para que o juiz conheça a verdade. A prisão preventiva do imputado se assemelha a um daqueles remédios heróicos que devem ser ministrados pelo médico com suma prudência, porque podem curar o enfermo, mas também pode ocasionar-lhe um mal mais grave; quiçá uma comparação eficaz se possa fazer com a anestesia, e sobretudo com a anestesia geral, a qual é um meio indispensável para o cirurgião, mas ah se este abusa dela! (CARNELUTTI apud LOPES JR., 2009b, p. 66).

 

 

            4) Referente ao paradigma de tratamento do acusado durante o inquérito policial e o transcorrer do processo – durante a fase pré-processual (inquérito policial) e o próprio transcurso do processo, deve ser dispensado, tanto ao investigado quanto ao acusado, tratamento compatível com o seu estado de inocente. De acordo com Pacceli (2009), é o princípio da presunção de inocência que faz com que o cidadão assuma posição de sujeito na relação processual. Ou, de acordo com Lopes Jr. “… a presunção de inocência deve(ria) ser um princípio de maior relevância, principalmente no tratamento processual que o juiz deve dar ao acusado. Isso obriga o juiz não só a manter uma posição “negativa” (não o considerando culpado), mas sim a ter uma postura positiva (tratando-o efetivamente como inocente).” (2009a, p. 192).

 

            Ainda, segundo Lopes Jr.

 

Em suma:a presunção de inocência impõe um verdadeiro dever de tratamento (na medida em que exige que o réu seja tratado como inocente), que atua em duas dimensões: interna ao processo e exterior a ele. Na dimensão interna, é um dever de tratamento imposto – primeiramente – ao juiz, determinando que a carga da prova seja inteiramente do acusador (pois, se o réu é inocente, não precisa provar nada) e que a dúvida conduza inexoravelmente à absolvição; ainda na dimensão interna, implica severas restrições ao (ab)uso das prisões cautelares (como prender alguém que não foi definitivamente condenado?). Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Significa dizer que a presunção de inocência (e também as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade) deve ser utilizada como verdadeiros limites democráticos à abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial. O bizarro espetáculo montado pelo julgamento midiático deve ser coibido pela eficácia da presunção de inocência. (LOPES JUNIOR, 2009a, p. 194-5).

 

            Na linha de demonstração de aspectos do princípio de inocência,
Vegas Torres

 

…aponta para as três principais manifestações (não excludentes, mas sim integradoras) da presunção de inocência: a) É um princípio fundante, em torno do qual é construído todo o processo penal liberal, estabelecendo essencialmente garantias para o imputado frente à atuação punitiva estatal. b) É um postulado que está diretamente relacionado ao tratamento do imputado durante o processo penal, segundo o qual haveria de partir-se da idéia de que ele é inocente e, portanto, deve reduzir-se ao máximo as medidas que restrinjam seus direitos durante o processo (incluindo-se, é claro, a fase pré-processual). c) Finalmente, a presunção de inocência é uma regra diretamente referida ao juízo do fato que a sentença penal faz. É a sua incidência no âmbito probatório, vinculando à exigência de que a prova completa da culpabilidade do fato é uma carga da acusação, impondo-se a absolvição do imputado se a culpabilidade não ficar suficientemente demonstrada. (apud LOPES JR., 2009a, p. 192-3).

 

 

            De tudo, pode-se afirmar que o princípio da presunção de inocência constitui princípio informador/reitor de todo o processo penal concebido como instrumento de aplicação de sanções punitivas em um sistema jurídico no qual sejam respeitados fundamentalmente os valores inerentes à dignidade da pessoa humana, como tal as atividades estatais concernentes à repressão criminal. O art. 5º, LVII, da Constituição Federal estabelece um dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito como garantia processual penal, visando à tutela da liberdade pessoal.

 

3 CRITÉRIOS DE APLICAÇÃO DA PENA: A PROBLEMÁTICA DOS ANTECEDENTES CRIMINAIS

 

O art. 68 do Código Penal estabelece o critério trifásico de aplicação da pena: “Cálculo da pena – Art. 68 CP – A pena base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento.”

          

O art. 59 do referido dispositivo legal traz à análise as chamadas circunstâncias judiciais a serem levadas em consideração na fixação da pena ao agente considerado culpado por um delito: “Fixação da pena – Art. 59 CP – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.”

          

Muitas discussões e divergências, tanto doutrinárias como jurisprudenciais, existiam em relação àquilo que poderia ser considerado maus antecedentes para fim de exasperação da pena base nos termos do art. 59 do Código Penal.

          

Os antecedentes são fatos e episódios passados da vida da pessoa, da vida pregressa do agente, são circunstâncias que podem ser levadas em consideração quando da análise da prática do crime. Eles podem ser bons ou maus.

          

A tendência da doutrina e jurisprudência pátria era de entendimento que no conceito de maus antecedentes entravam processos criminais em andamento, arquivados, anteriores (que não mais geram reincidência) e inquéritos policiais. Assim, o fato de o acusado responder por outros processos criminais, ter boletins de ocorrência nos quais é indiciado ou ter cometido crimes anteriores (que não mais podem configurar a reincidência para aumento de pena) dariam ensejo ao aumento da pena base em relação aos maus antecedentes.

          

4 ANTECEDENTES CRIMINAIS: SÚMULA 444 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

 

Visando a aplacar referida discussão, sobretudo dando interpretação constitucional ao conceito de maus antecedentes, diante do princípio da presunção de inocência, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça aprovou a súmula 444, proibindo que inquéritos policiais e ações penais ainda em curso sejam usados para exasperar a pena do acusado acima do mínimo legal.

          

 Estabelece o conteúdo da Súmula 444 do Superior Tribunal de Justiça: “É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base.”

          

No julgamento do habeas corpus nº 128.800 (MS) o Ministro Felix Fischer defendeu:

 

Inquéritos e ações penais em andamento, por si, não podem ser considerados como maus antecedentes, para fins de exacerbação da pena-base ou, consequentemente, para a fixação de regime inicial de cumprimento da pena mais gravoso. (…) Não havendo elementos suficientes para a aferição da personalidade do agente, mostra-se incorreta sua valoração negativa a fim de supedanear o aumento da pena-base.

 

 

            Ainda, entendimento do Supremo Tribunal Federal:

 

HABEAS CORPUS – INJUSTIFICADA EXACERBAÇÃO DA PENA COM BASE NA MERA EXISTÊNCIA DE INQUÉRITOS OU DE PROCESSOS PENAIS AINDA EM CURSO – AUSÊNCIA DE CONDENAÇÃO PENAL IRRECORÍVEL – PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA NÃO-CULPABILIDADE (CF, ART. 5º, LVII) – PEDIDO DEFERIDO, EM PARTE.

O princípio constitucional da não-culpabilidade, inscrito no art. 5º, LVII, da Carta Política não permite que se formule, contra o réu, juízo negativo de maus antecedentes, fundado na mera instauração de inquéritos policiais em andamento, ou na existência de processos penais em curso, ou, até mesmo, na ocorrência de condenações criminais ainda sujeitas a recurso, revelando-se arbitrária a exacerbação da pena, quando apoiada em situações processuais indefinidas, pois somente títulos penais condenatórios, revestidos da autoridade da coisa julgada, podem legitimar tratamento jurídico desfavorável ao sentenciado. Doutrina. Precedentes.

(STF – HC 79966/SP, 2º Turma, Rel. p/ Acórdão Min. Celso de Mello, DJU de 29/08/2003).

 

 

            No julgamento do habeas corpus nº 81.866 (DF) do Superior Tribunal de Justiça, a Ministra Relatora Jane Silva (Desembargadora convocada do Tribunal de Justiça de Minas Gerais) assim se pronunciou:

 

Após a Constituição da República de 1988, antecedentes devem resultar de decisão condenatória transitada em julgado, sendo que processos em andamento, ou inquéritos não podem servir para agravar a pena do réu, nem mesmo para se considerar que ele possui má conduta social, ou personalidade deformada, porquanto poderá, no final dos processos, ser absolvido. A condenação só produz qualquer efeito, em relação ao apenado, após o seu trânsito em julgado…

 

 

            Em decisão do Supremo Tribunal Federal:

 

 

O ato judicial de fixação da pena não poderá emprestar relevo jurídico-legal a circunstância que meramente evidencie haver sido, o réu, submetido a procedimento penal persecutório, sem que deste haja resultado, com definitivo trânsito em julgado, qualquer condenação de índole penal. A submissão de uma pessoa a meros inquéritos policiais, ou, ainda, a persecuções criminais de que n
ão haja derivado qualquer título penal executório, não se reveste de suficiente idoneidade jurídica para justificar ou legitimar a especial exacerbação da pena. Tolerar-se o contrário implicaria admitir grave lesão ao princípio constitucional consagrador da presunção de não culpabilidade dos réus ou dos indiciados (Cf.art. 5º, LVII). É inquestionável que somente a condenação penal transitada em julgado pode justificar a exacerbação da pena, pois, com ela, descaracteriza-se a presunção juris tantum de não-culpabilidade do réu, que passar, então – e a partir desse momento – a ostentar o status jurídico-penal de condenado, com todas as conseqüências daí decorrentes. Não podem repercutir contra o réu situações jurídico-processuais ainda não definidas por decisão irrecorrível do Poder Judiciário especialmente naquelas hipóteses de inexistência de título penal condenatório definitivamente constituído. (STF – HC 68465-3. Rel. Ministro Celso Mello. DJU de 21.02.1992, p. 1694).

 

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Em conformidade com o entendimento, agora sumular, do Superior Tribunal de Justiça, resta superada a discussão quanto à possibilidade de se adotar inquéritos policiais e ações penais em andamento para a exasperação da pena base como sendo causa de caracterização de maus antecedentes. Assim, diante da Constituição Federal de 1988, não há como se dar outra interpretação ao conceito de maus antecedentes, pois considerar inquéritos policiais e processos penais em andamento como maus antecedentes caminha em sentido contrário a um dos princípios reitores/estruturadores do processo penal do Estado Democrático de Direito – a presunção de inocência[6].

 

            Em meio a tantas pressões por um Direito Penal e Processo Penal máximos um alento à necessidade de um processo penal instrumental e garantista. Lembrando que Bobbio (1992) já dizia que o problema não está mais na questão da existência dos direitos fundamentais, mas sim no da sua efetividade, e aqui, o Superior Tribunal de Justiça, de forma vitoriosa, e até mesmo contrária aos postulados atuais de uma justiça penal repressiva e utilitarista e de um Direito Penal e Processual Penal do autor, deu fôlego à efetividade do garantismo

[7].

 

Referências bibliográficas

 

ANDRADE, Vera Regina Pereira. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

 

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução Paulo M. Oliveira. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d].

 

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

 

DINAMARCO, Candido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 1990.

 

FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 3. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

 

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

 

GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991.

 

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. Vol 1. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009a.

 

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. Vol. 2. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009b.

 

LOPES JR., Aury. A instrumentalidade garantista do processo penal. Disponível em: <http://www.juspodivm.com.br/i/a/%7B34561569-847D-4B51-A3BD-B1379C4CD2C6%7D_022.pdf> Acesso em: janeiro, 2010.

 

NIKITENKO, Viviani Gianine. Aspectos do princípio da presunção de inocência e do princípio do in dúbio pro reo. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/8513> Acesso em: setembro, 2010.

 

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 12 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

 

 

Notas:

[*] La autora es Mestre em Direito pela Universidade Integrada do Alto Uruguai e das Missões y Professora da Universidade Federal de Rondônia – UNIR.

1 “Numa concepção autoritária do Estado, o processo penal é então dominado, exclusivamente, pelo interesse do Estado, que não concede ao interesse das pessoas qualquer consideração autônoma e, ligado a uma liberdade inteiramente discricionária do julgador (embora exercida sempre em favor do poder oficial), constitui o único vector processualmente relevante. O argüido, por seu turno, é visto não como sujeito co-actuante no processo, mas como mero objeto de inquisição, como algo que é afeito ao processo mas que nele não participa ativamente.” (FERNANDES, 2002, p. 15).

 

2 “No Estado liberal, no centro da consideração está agora o indivíduo autônomo, dotado com os seus direitos naturais originários e inalienáveis (portanto de uma lide, disputa de controvérsia) entre o Estado que quer punir os crimes e o indivíduo que quer afastar de si quaisquer medidas privativas ou restritivas de sua liberdade. Por seu lado, a lide, para que seja ‘fair’, supõe a utilização de armas e a disponibilidade, pelos contendores, de meios tanto quanto possíveis iguais; por isso o indivíduo não pode ser abandonado ao poder do Estado, antes tem de surgir como verdadeiro sujeito de processo, armado com o seu direito de defesa e com as suas garantias individuais.” (FERNANDES, 2002, p. 16).

 

3 “Disso decorre – se é verdade que os direitos dos cidadãos são ameaçados não só pelos delitos mas também pelas penas arbitrárias – que a presunção de inocência não é apenas uma garantia de liberdade e de verdade, mas também uma garantia de segurança ou, se quisermos, de defesa social: da específica “segurança” fornecida pelo Estado de direito e expressa pela confiança dos cidadãos na justiça, e daquela específica “defesa” destes contra o arbítrio punitivo.” (FERRAJOLI, 2002,  p. 506).

“… a denominada presunção de inocência constitui princípio informador de todo o processo penal, concebido como instrumento de aplicação de sanções punitivas em um sistema jurídico no qual sejam respeitados; fundamentalmente, os valores inerentes à dignidade da pessoa humana; como tal as atividades estatais concernentes à repressão criminal.” (GOMES FILHO, 1991, p. 37).

 

4 A cultura jurídica penal que se desenvolveu com o nascimento do Estado moderno desenvolveu uma ciência juspositivista, baseada no princípio da legalidade e nos direitos naturais, que teve como conseqüência a elaboração, em grande parte, das garantias de liberdade do cidadão e as formas do moderno Estado de Direito, como sistema político submetido a regras e limites jurídicos. (FERRAJOLI, 2002). E a Escola Penal Clássica foi o marco desta transição, pondo ao pensamento jurídico-penal do medievo um período humanitário. A fase fundacional da Escola Clássica é marcada pela obra “Dos Delitos e das Penas”, de Beccaria, 1764, que, sim
ultaneamente, combate à justiça penal do Antigo Regime e projeta uma nova forma de controle dos desvios, mais humanitária e utilitária, contratualmente modelada. A obra de Beccaria pode ser analisada a partir de duas dimensões: uma crítica (negativa) e outra reconstrutora (positiva). Quanto à dimensão crítica, a obra serviu como denúncia do sistema de controle de delitos até o momento existente. Na dimensão reconstrutora, o livro estabelece as bases fundacionais do moderno Direito Penal e Processual Penal orientado pela exigência de segurança individual frente ao arbítrio do controle de desvio existente, sendo a questão central a instauração de um regime de legalidade capaz de evitar esse regime de insegurança e incerteza punitiva.

 

5 Lopes Jr. traz a conhecimento aspectos relacionados à doutrina de Perfecto Andrés Ibáñez: “Podemos extrair da presunção de inocência que: a) Predetermina a adoção da verdade processual, relativa, mas dotada de um bom nível de certeza prática, eis que obtida segundo determinadas condições. b) Como conseqüência, a obtenção de tal verdade determina um tipo de processo, orientado pelo sistema acusatório, que impõem a estrutura dialética e mantém o juiz em estado de alheamento (rechaço à figura do juiz-inquisidor – com poderes investigatórios/instrutórios – e consagração do juiz de garantias ou garantidor). c) Dentro do processo, se traduz em regras para o julgamento, orientando a decisão judicial sobre os fatos (carga da prova). d) Traduz-se, por último, em regras de tratamento do acusado, posto que a intervenção do processo penal se dá sobre um inocente.” (2009a, p. 192).

 

6 Poderia restar um questionamento acerca do que poderia então, diante do aparente esvaziamento do conceito, ser considerado como maus antecedentes a fim de exasperação de pena na fixação da pena base, assim segue entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça “Por maus antecedentes criminais, em virtude do que dispõe o art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República, deve-se entender a condenação transitada em julgado, excluída aquela que configura reincidência (art. 64, I, CP), excluindo-se processo criminal em curso e indiciamento em inquérito policial” (HC 31.693/MS, Rel. Min. PAULO MEDINA, DJ 6/12/2004, p. 368).

 

7 “A efetividade da proteção está em grande parte pendente da atividade jurisdicional, principal responsável por dar ou negar a tutela dos direitos fundamentais. Como conseqüência, o fundamento da legitimidade da jurisdição e da independência do Poder Judiciário está no reconhecimento da sua função de garantidor dos direitos fundamentais inseridos ou resultantes da Constituição. Nesse contexto, a função do juiz é atuar como garantidor dos direitos do acusado no processo penal.” (LOPES JR., p. 7).