Protagonismo carcerário Por Alex Victor da Silva

Muito têm se falado a respeito de protagonismo social, protagonismo juvenil e outras formas de participação ativa. Mas, por outro lado, pouco se ouve falar sobre “protagonismo carcerário”. Agora, essa “novidade” começa a ser divulgada pela mídia e a consolidar-se como uma realidade incontestável.
Realmente, não há como negar que a “ação” desenvolvida por uma parcela da população carcerária brasileira tem chamado a atenção de autoridades nacionais e internacionais, bem como da sociedade civil – não propriamente pela maneira exemplar como se comportam estes reclusos, mas sim pela perplexidade que tal “atuação” causa. Isso porque até bem pouco tempo atrás era inconcebível a idéia de que um condenado pudesse cooperar com a execução da pena que lhe foi imposta.
Os tempos mudaram, felizmente. Basta uma visita a qualquer um dos Centros de Ressocialização – CRs (já existem 21 no Estado de São Paulo) para se constatar que nestes locais quase tudo é feito pelos recuperandos (termo empregado para designar os que ali cumprem pena), sob a supervisão de alguns poucos funcionários do Estado e de organizações não-governamentais (ONGs) que atuam em parceria.
De fato, atividades como o plantio de hortaliças, a limpeza e a conservação das instalações, e o preparo das refeições, entre outras, são desenvolvidas com muita competência e boa-vontade por esses “agentes”. Assim, todos os recuperandos desempenham algum “papel” importante na “comunidade carcerária” em que, por imposição da Justiça Pública, têm que conviver (por maior ou menor lapso temporal, conforme o tempo de duração da pena – que, evidentemente, varia de acordo com o tipo de crime cometido e com as circunstâncias de cada caso).
Esses recuperandos compõem o que se pode chamar de “sistema prisional alternativo”, que não é tão novo nem tão desconhecido assim.
Em 1972, na cidade de São José dos Campos (SP), um grupo de voluntários cristãos, sob a liderança do advogado Mário Ottoboni, passou a freqüentar o presídio da Humaitá para evangelizar e dar apoio moral aos presos. No começo tudo era empírico e objetivava tão-somente resolver o problema daquela Comarca, cuja população vivia sobressaltada com as constantes rebeliões, fugas e ações violentas verificadas naquele estabelecimento prisional. O grupo não tinha parâmetros nem modelos a serem seguidos; muito menos experiência com o mundo do crime, das drogas e das prisões. Mesmo assim, pacientemente, foram sendo vencidas as barreiras que surgiam no caminho.
Dois anos depois, buscando superar os obstáculos que comprometiam tão importante trabalho, aquele grupo fundou a Associação de Proteção e Assistência aos Condenados – APAC (entidade jurídica – sem fins lucrativos – que tem como objetivo auxiliar o Estado na recuperação de condenados à pena privativa de liberdade, coadjuvando na proteção da sociedade e na realização da Justiça). Nessa empreitada, o apoio do então Juiz da Vara das Execuções Criminais (VEC) daquela Comarca, Dr. Silvio Marques Neto, hoje desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foi fundamental.
Posteriormente, o projeto inicial foi aperfeiçoado pelo atual Secretário da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, Dr. Nagashi Furukawa, que (após tê-lo implementado com sucesso na Comarca de Bragança Paulista, quando era Juiz Corregedor) fez despertar no Governador Mário Covas o desejo de reproduzir estas experiências em todo o Estado.
Hoje esse sistema é referência nacional e mundial. No Brasil já é utilizado em mais de 150 Comarcas; no exterior, a experiência nascida aqui é aplicada nos Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, Suécia, Escócia, Argentina, Peru, Colômbia, Costa Rica, Chile, Panamá, Porto Rico, Equador, Bolívia, Nova Zelândia, Irlanda do Norte, Coréia do Sul e Filipinas.
Além do custo reduzido (cerca de 40% menor que o “sistema tradicional”), esse sistema de administração compartilhada tem o menor índice de reincidência no mundo inteiro: em torno de 5%, conforme relatório da empresa Byron Johnson, dos Estados Unidos. No “sistema comum” esse indicador salta para 85%, fato que evidencia a gritante contradição entre os dois sistemas – num, se gasta mais e recupera-se menos; no outro, acontece o inverso.
É importante citar que a metodologia de recuperação utilizada nestes centros baseia-se quase que exclusivamente na autodisciplina dos recuperandos. Tal posicionamento propiciou o surgimento de um “fenômeno” que denominamos: protagonismo carcerário.
Mas o que é, de fato, protagonismo carcerário? É um processo de recuperação de condenados à pena privativa de liberdade no qual o recuperando realiza ações de intervenção em seu “contexto social” (sociedade prisional), demonstrando que está disposto a participar, a colaborar, a encarar desafios e a mostrar que não está acomodado, como é comum que as pessoas pensem; é, em resumo, o método de recuperação no qual o recuperando é o protagonista (de protagonistés, palavra de origem grega composta pelas raízes proto, que significa o primeiro, o principal, e agonistes, que significa o lutador).
Dentro desse contexto, o recuperando é o lutador principal; é o ator que desempenha o papel mais importante; é, enfim, a pessoa que ocupa o primeiro lugar num acontecimento: sua própria recuperação.
Mas engana-se quem pensa que o recuperando, como ator principal que realmente é, participa apenas de ações que só dizem respeito a si mesmo. Muito pelo contrário. É por meio da conquista do bem comum que o protagonista carcerário cria oportunidades que certamente influenciarão de maneira decisiva nos níveis de autonomia e de autodeterminação que será capaz de alcançar na vida profissional e cívica, quando reconquistar o direito de ir e vir livremente.
Nessa visão, a noção de protagonismo carcerário não possui nenhum viés individualista, conquanto possa eventualmente servir como instrumento de individualização na fase executória da pena.
No protagonismo carcerário a palavra de ordem é: ação. E esta ação é exteriorizada principalmente por meio da educação e do trabalho; mas há a opção livre do recuperando em todas as fases do processo: planejamento, execução e avaliação.
Dessa forma, o recuperando deixa de ser um simples “espectador” e passa a ser concebido como fonte de iniciativa, que é ação; como fonte de autonomia, que é opção; e como fonte de compromisso, que é responsabilidade.
Essa nova perspectiva desenvolve no recuperando uma atitude de apreço por si mesmo (auto-estima) e de responsabilidade individual e social, com respeito à sua família, ao próximo e à sociedade; além disso, faz crescer no recuperando não só a vontade, mas a capacidade de viver respeitando as leis e de sustentar-se com o produto de seu trabalho; enfim, viabiliza a assimilação de valores positivos pelo recuperando, a resolução de possíveis conflitos que venha enfrentar no futuro e seu engajamento no processo de construção de um mundo mais justo e solidário.

(*) El autor Alex Victor da Silva atualmente é recuperando e cumpre pena de reclusão no Centro de Ressocialização “Prefeito João Missaglia” de Mogi Mirim (SP). Se dedica, especialmente, ao estudo das questões penitenciárias e penais. Além disso, se dedica ao trabalho de fomentar e divulgar o protagonismo carcerário – movimento do qual é precursor (Julho/2005).

Bibliografia:
 
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FBAC – Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados e APAC – As
sociação de Proteção e Assistência aos Condenados.  Web Site oficial: <http://www.geocities.com/fbacapac> Acesso em: 28 jul. 2005.
 
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SAP/SP – Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo. Realizações: Inovações no Sistema Prisional com a criação dos CRs. Apresentação: Uma atitude para mudar o sistema prisional. Arquivo para download. Disponível em: <http://www.sap.sp.gov.br> Acesso em: 28 jul. 2005.
 
 
SOUZA, Moacyr Benedito de. Participação da comunidade no tratamento do delinqüente: APAC – uma experiência vitoriosa. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 73, nº 583, maio/1984, p. 303-311.
 
XIMENES, Lígia. APAC, o modelo que funciona. Diálogos & Debates. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, ano 3, nº 2, Edição nº 10, Dez/2002, p. 52-5.