A equivocada visão do princípio da insignificância pelo STJ Por Mateus Castriani Quirino

         Em recente decisão de habeas corpus (HC 49.423), a sexta turma do Superior Tribunal de Justiça sustentou, sobre frágeis argumentos, que o valor do bem furtado não é determinante para a aplicação ou não do princípio da insignificância. Em seu voto, o ministro Hamilton Carvalhido sustentou que "Em que pese o valor do bem subtraído ter sido avaliado em R$ 80, não se pode concluir pela ínfima afetação do bem jurídico tutelado, notadamente pela presença da periculosidade social da ação do agente”. Valendo-se igualmente de argumentos abstratos, vagos e imprecisos – e.g., “periculosidade social” – foi denegada a ordem de habeas corpus, com a devida vênia, de forma incorreta.

         Primeiramente cumpre assinalar que o resultado jurídico – que não se confunde com o resultado naturalístico –  é requisito essencial do injusto penal (seja o crime material, formal, ou de mera conduta), em assonância com o princípio da ofensividade. Nesse diapasão, tem-se que o resultado jurídico penalmente relevante há de ser significativo, caso contrário resta excluída a tipicidade penal (precisamente a material), em razão do princípio da insignificância – cuja autoria atribui-se a Claus Roxin. 

         O referido princípio, fulcrado no adágio minima non curat praetor, afasta a tipicidade material do fato que, apesar de se amoldar ao tipo penal (formalmente típico), acarreta mínima ofensa ao bem jurídico protegido, porque “em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado”1.

         Considerando-se  a tipicidade penal como composta pela tipicidade formal corrigida pela tipicidade conglobante (onde se inclui a tipicidade material), ainda que se constate a ocorrência daquela em relação ao fato objeto do habeas corpus julgado pelo STJ, não se pode dizer o mesmo da última.

         Analisando o caso sob um perspectiva do desvalor do resultado, apenas a transcedentalidade da lesão é insuficiente para que se configure a tipicidade material do fato, sendo necessária, igualmente, a relevância da ofensa ao bem jurídico.  Não é possível  desvalorar a conduta prescindindo ou minimizando o resultado (jurídico), como pretendeu o ministro relator, referindo-se à suposta “periculosidade social” da conduta do agente.

         Destarte, levando em conta que o bem jurídico que se pretende tutelar com o tipo normatizado no artigo 155 do Código Penal é o patrimônio do indivíduo, é indeclinável, para se avaliar a significância ou não do injusto, mensurar o grau de extensão da infringência a esse bem jurídico específico, considerando, por conseguinte, o valor da coisa 2 no caso concreto. Assim, por questão de lógica,  deve-se considerar o bem jurídico tutelado pelo tipo como parâmetro para a aferição da magnitude da lesão e só assim pode-se concluir se se trata de caso de aplicação do princípio da insignificância.

         Não se pode legitimar uma intervenção punitiva quando não haja, pelo menos, a afetação transcedental e relevante de um bem jurídico. Quando passa a agir sobre conflitos de lesividade ínfima, o processo de criminalização atinge um patamar de irracionalidade intolerável.

         Vencido o voto do ministro Nilson Naves que, de forma coerente, manifestou-se sustentando que “a melhor das compreensões penais recomenda não seja mesmo o ordenamento jurídico penal destinado a questões pequenas – coisas quase sem préstimo ou valor”.

         De fato, não há como sustentar, como o fez a maioria da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, a necessidade da insurgência do poder punitivo neste caso concreto, por ser irrazoável em relação ao mínimo grau de intensidade da afetação ao bem jurídico, tendo em conta a feição subsidiária do Direito Penal,  que em razão da sua drasticidade, deve ser a ultima ratio para a manutenção da ordem jurídica.

         A decisão do STJ caracteriza um retrocesso na busca de um direito penal garantista. É imprecisa, do ponto de vista técnico jurídico, ao ingnorar o bem jurídico tutelado pelo tipo como parâmetro para a aferição da extensão da sua própria lesão.  É ingênua, ao irradiar a insurgência punitiva a um conflito mínimo, acreditando que o direito penal possa resolvê-lo.

 
Notas:

[*] El autor es Acadêmico de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e estagiário do Ministério Público Federal. Su email: mateuscq@gmail.com

1. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral, v. 1. São Paulo : Saraiva, 2006.

2. Nesse sentido, dentre outros, NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 4. ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2003.