A dogmática penal tradicional e a imputação penal da pessoa jurídica. Por Mário César Hamdan Gontijo

Introdução

 

A questão que se coloca como objeto deste estudo é a respeito da possibilidade de imputação penal às pessoas jurídicas.

 

A pesquisa se inicia por uma tentativa de conceituação do quem venha a ser uma pessoa jurídica. Daí que foram expostas as principais (apenas as principais) vertentes que buscam a definição do estudo. Este o primeiro de dois pontos de partida.

 

O segundo ponto de partida do estudo foi a busca de esclarecimento sobre qual o significado de imputação ou de imputabilidade para o direito penal. Fez-se aí uma rápida e focada análise da dogmática jurídico-penal tradicional.

 

Foi levantada, de forma lógica, a razão de ser do tradicional princípio societas delinquere non potest, que enuncia a impossibilidade da imputação penal a uma pessoa jurídica, baseado no problema da visão tradicional acerca da culpabilidade.

 

A par disso, há no direito comparado sistemas penais que já fazem previsão de imputação penal às pessoas jurídicas. Foram enunciados os mais importantes para este estudo, quais sejam, o francês e o inglês.

 

Visto isso, lembra-se que a sociedade contemporânea, dita “de risco”, sente a necessidade de que as pessoas jurídicas respeitem determinados limites e que, em virtude disso e de outros fatores, optou o legislador brasileiro por se valer, ainda que apenas quanto ao meio-ambiente como bem jurídico, do direito penal como vetor de política social, em consonância com o já anunciado expansionismo do direito penal.

 

Enfrentou-se, então, a questão específica da imputação penal da pessoa jurídica no direito brasileiro, com comentários à sua constitucionalidade, para se concluir que o sistema brasileiro, para que possa se sustentar, deve ser aperfeiçoado com a instituição de todo um arcabouço dogmático que lhe garanta.

 

I – Pessoa jurídica

 

Antes de tudo, cumpre-nos breve digressão acerca da natureza e conceito de pessoa jurídica.

 

É sujeito de direito aquele que possa ser credor de uma obrigação ou devedor de uma prestação. Para que isto ocorra, não há a necessidade de que o ente em questão seja humano e nem que possua personalidade jurídica.

 

De fato, há sujeitos de direito humanos (pessoa natural e nascituro) e sujeitos de direito inanimados (pessoa jurídica, massa falida, espólio, ect.)[i]. Pode-se ainda pensar em sujeitos de direito personalizados (pessoa natural e pessoa jurídica) e não personalizados (nascituro, espólio, massa falida, etc.).

 

Tendo-se que a personificação jurídica é um dado normativo, isto é, possui personalidade jurídica o ente a que o direito a atribuir[ii], a distinção de um ente personalizado de um não personalizado também deve ser feita de forma normativa. E por esta metódica se vê que aos entes personalizados é permitido fazer tudo aquilo que não esteja proibido por lei, ao passo que aos não personalizados não basta a não proibição, sendo necessária uma autorização para agir de dada maneira, ou seja, só pode agir nos termos em que a lei o permita.

 

A pessoa jurídica é, portanto, um ente personalizado que age juridicamente desde que não contrarie uma vedação normativa expressa. Esta personalização, no direito brasileiro, se dá pela inscrição dos atos constitutivos no registro respectivo que, em geral, é o registro civil das pessoas jurídicas ou o registro público das empresas mercantis.

 

Constata-se facilmente, portanto, a existência de um vínculo prévio à constituição das pessoas jurídicas, que pode consistir em um acordo entre pessoas (naturais ou jurídicas, em regra) para as sociedades e associações, ou na destinação/afetação de um patrimônio. Pode-se pensar, então, em uma sociedade não personificada, mas não em uma pessoa jurídica que não seja uma sociedade, fundação ou associação. Delimitam-se, dessa forma, os tipos de pessoas jurídicas existentes no direito brasileiro.

 

Na tentativa de se explicar o que venha a ser uma pessoa jurídica, a literatura jurídica formula diversas teorias (individualista, da ficção, orgânica, etc.), que não serão objeto de abordagem mais detalhada dado o foco do presente estudo. Exploraremos perfunctoriamente as mais aceitas.

 

Não se adotará a simples exclusão desta discussão, como o faz Requião[iii], por se entender relevante a temática para a discussão da imputação penal das pessoas jurídicas. Não nos basta, então, a simples noção de que tem personalidade jurídica o ente que levar a registro no órgão próprio seus atos constitutivos.

 

Tendo por base as lições de Savigny, a pessoa jurídica foi entendida como sendo “uma mera criação do legislador, uma criação intelectual, uma ficção. Ela é um ser fictício, dotado de uma capacidade artificial, uma vez que a vontade seria inerente apenas aos seres humanos” [iv](negrito nosso). Esta concepção é conhecida como teoria da ficção. Não haveria, portanto, uma existência substancial das pessoas jurídicas. Elas seriam uma simples ficção criada pelo legislador para poder melhor regular as relações entre pessoas e interesses.

 

Marlon Tomazete[v] apresenta como crítica a esta teoria o fato de que existiria uma vontade real da pessoa jurídica que, embora formada pela conjunção das vontades de seus sócios, delas seria distinta. A crítica parte de uma premissa, a de que a vontade da sociedade seria formada pela conjunção das de seus sócios, que não é totalmente correta. É que a pessoa jurídica age, em regra, pela vontade de seus administradores, deixando à decisão dos sócios somente determinadas matérias eleitas pela lei. Essa constatação não tira da conclusão do raciocínio a relevância para este estudo. Importa-nos que, no sentido exposto, a vontade da pessoa jurídica seria diversa da de seus sócios e da de seus administradores, embora formada por essas.

 

Se a pessoa jurídica tem uma vontade própria, diversa da de seus sócios e da de seus administradores, mas se aquela vontade decorre destas, ela teria capacidade de agir por si mesma, seja de forma lícita, seja de forma ilícita.

 

Contudo, é bom que se tenha em vista a advertência de Luiz Régis Prado de que a vontade da pessoa jurídica é também uma ficção e que, como tal, pode ter efeitos na esfera civil, mas nunca na penal[vi]. Em outros termos, a pessoa jurídica não poderia delinqüir.

 

Por seu turno, originada da obra de Otto Gierke, há a chamada teoria da realidade, da personalidade real ou orgânica, pela qual a pessoa jurídica teria existência real e vontade própria, totalmente diversas das de seus sócios ou administradores. Em decorrência, a pessoa jurídica teria capacidade de agir e, logicamente, de praticar ilícitos penais[vii].

 

Por fim, e com a relevância de se tratar do entendimento que se adota majoritariamente no direito empresarial, tem-se a chamada teoria da realidade técnica. Por esta interpretação, a pessoa jurídica tem existência real no mundo jurídico ou, nos dizeres de Ferrara, “a pessoa jurídica é uma realidade, mas uma realidade do mundo jurídico, não da vi
da sensível”[viii]. A pessoa jurídica seria tão real quanto a posse, o casamento ou qualquer outro instituto jurídico. Ainda como estes, a atuação da pessoa jurídica pode ser captada no mundo sensível, embora nele não exista.

 

Volta-se assim, e em conclusão, ao fato de que a personalidade jurídica é um dado normativo.

 

 

II – Imputação

 

Não se fará neste ensaio uma revisão de toda a dogmática penal. Não há espaço aqui para tanto. A pesquisa será dirigida e, neste ponto, tópica.

 

De acordo com Aníbal Bruno[ix], “imputabilidade é o conjunto de condições pessoais que dão ao agente capacidade para lhe ser juridicamente imputada a prática de um fato punível”.

 

A realização de uma ação típica e antijurídica não é suficiente para levar à responsabilidade penal, sendo necessário se perquirir acerca das condições sob as quais o autor do fato agiu. Esta responsabilidade é tratada genericamente como culpabilidade que, por seu turno, se distingue entre capacidade de culpabilidade (ou imputabilidade), a consciência da ilicitude e as circunstâncias que excluem a culpabilidade (exigibilidade de conduta diversa)[x].

 

Como se vê, então, ao se falar em imputabilidade, estamos discutindo uma das faces da culpabilidade e não todo este instituto jurídico. Apenas a porção que diz respeito à capacidade de alguém de ser culpado por uma ação.

 

Partindo do texto do artigo 26 do Código Penal Brasileiro[xi], constata-se que a isenção de pena ali mencionada não decorre de causas atinentes à tipicidade e nem à antijuridicidade, o que leva à conclusão de que, embora se tenha o cometimento de um fato típico e antijurídico, não há capacidade de sua reprovação. Ou seja, está ausente a culpabilidade do agente[xii].

 

Ainda com base no texto legal mencionado, já se pode ver a ligação entre a questão da imputabilidade e a ação, liame confirmado pela literatura jurídica especializada.

 

Assim, von Beling é categórico ao vincular a imputabilidade e possibilidade de autodeterminação do homem (“la libertad del hombre para determinarse em relación a sus proprios fines”), o que faz com que somente seja imputável aquele que tenha liberdade física e espiritual para agir voluntariamente[xiii]. Da mesma forma o faz Roxin[xiv].

 

É ainda de Claus Roxin a noção acerca da teoria da imputação objetiva[xv]. Se um ato humano se mostra como condição necessária (ainda que não suficiente) à produção de um resultado, haverá nexo causal entre um e outro e o tipo objetivo será imputável a quem praticou o ato. Este raciocínio, formulado pela teoria da equivalência (ou das condições) se mostra insuficiente (ou mesmo incorreto) para a definição de causalidade[xvi]. Por isso, a causalidade deve ser vista como partindo de uma condição conforme as leis, passando a um ponto de vista normativo da conduta do agente. Partindo desta constatação, o autor propõe a sua teoria da imputação objetiva, com base em que:

 

(…) la imputación al tipo objetivo se produce conforme a dos principios sucesivamente estructurados: a) Un resultado causado por el agente sólo se puede imputar al tipo objetivo si la conducta del autor ha creado un peligro para el bien jurídico no cubierto por un riesgo permitido y ese peligro también se ha realizado en el resultado concreto. Así p.ej. en el caso de la tormenta mencionado en el nm. 36 falta ya una acción homicida en el sentido del § 212 porque el hecho de enviar a alguien al bosque no crea un peligro Jurídicamente relevante de matar. Em el caso del incendio del hospital el disparo del autor ciertamente ha creado un peligro no permitido de matar a la víctima; pero en el incendio del hospital no se realiza el peligro que parte de una lesión consecuencia de un disparo, de tal modo que por esa razón no se le puede imputar el resultado al autor como homicidio consumado. Mientras que la falta de creación de peligro conduce a la impunidad, la falta de realización del peligro en una lesión típica del bien jurídico sólo tiene como consecuencia la ausencia de consumación, por lo que en su caso se puede imponer la pena de la tentativa.

b) Si el resultado se presenta como realización de un peligro creado por el autor, por regla general es imputable, de modo que se cumple el tipo objetivo. Pero no obstante, excepcionalmente puede desaparecer la imputación si el alcance del tipo no abarca la evitación de tales peligros y sus repercusiones. Si p.ej. A incita a B a que haga una escalada al Himalaya, en la que este —tal como A había previsto— sufre un accidente mortal, entonces no sólo A ha causado la muerte de B, sino que en la muerte de B también se ha realizado un peligro causado por A. Y sin embargo A no ha cometido una acción punible de homicidio, puesto que si según el Derecho [alemán] vigente es impune incluso la incitación al suicidio, con mayor razón aún ha de ser impune la incitación a una mera autopuesta en peligro, que es de lo que aquí se trata. Por consiguiente, el alcance de los §§ 212, 222 y 230 no se extiende a la evitación de autopuestas en peligro dolosas, con lo que por esa razón no se puede imputar el resultado al incitador.

En resumen, pues, se puede decir que la imputación al tipo objetivo presupone la realización de un peligro creado por el autor y no cubierto por um riesgo permitido dentro del alcance del tipo.

 

Assim, qualquer que seja a forma pela qual se compreenda o que venha a ser imputação ou imputabilidade, tem-se que ela se refere à culpabilidade e, por conseguinte, se liga necessariamente à ação humana, como fenômeno psíquico, como ato subjetivo de vontade[xvii].

 

Dessas constatações decorre o princípio que move esta pesquisa: societas delinquere non potest.

 

 

III – A razão da discussão

 

Se um resultado penalmente relevante somente pode ser imputado a uma pessoa natural, dado que a jurídica não tem como realizar um fenômeno psíquico próprio, senão que, quando muito, como decorrência da conjugação das vontades de seus sócios ou administradores, a imputação a estes resolveria o problema.

 

Contudo, é de se ter em conta que a sociedade pós-moderna caracteriza-se por ser uma sociedade de risco. Destaca-se que o que se tem de novidade na sociedade não é a existência do risco, que sempre houve, mas sim a nova dimensão que ele assume na sociedade contemporânea. O que se vê, hoje, é que o desenvolvimento científico não é acompanhado pela análise, pela própria ciência, dos efeitos que advêm deste desenvolvimento, de onde surgem a incerteza e a insegurança que “obrigam o ser humano a lidar com o risco sob uma nova perspetiva”[xviii].

 

Silva Sánchez[xix] aponta como uma das conseqüências negativas do surgimento da chamada sociedade de risco justamente o fato de que ficamos expostos às decisões que se tomam no manejo dos avanços tecnológicos, daí surgindo ameaças reais ao meio ambiente, aos consumidores, etc., com muito maior possibilidade de que os resultados nos afetem, embora provocados a distância. Daí decorre uma “sensação social de insegurança”[xx].

 

Estes fatos, dentre outros, devem ser somados ao de que não se vislumbram outros meios pa
ra controle social destes riscos para que se entenda a expansão do direito penal. Nas palavras de Silva Sanchez[xxi]:

 

Lo anterior, con todo, todavía no explicaría de modo necesario la demanda de punición y la consiguiente expansión precisamente del Derecho penal. En efecto, tales datos podrían conducir ciertamente a una expansión de los mecanismos de protección no jurídicos, o jurídicos, pero no necesariamente de los jurídico-penales. Ocurre, sin embargo, que tales opciones o son inexistentes o parecen insuficientes, o se hallan desprestigiadas. En primer lugar, la sociedad no parece funcionar como instancia autónoma de moralización, de creación de una ética social que redunde en la protección de los bienes jurídicos. En segundo lugar, es más que discutible que cierta evolución del Derecho civil del «modelo de la responsabilidad» al «modelo del seguro» esté em condiciones de garantizar, por un lado, que éste cumpla efectivamente funciones de prevención y, por otro, que garantice a los sujetos pasivos una compensación, si no integral (cuya propia posibilidad práctica resulta cuestionable), al menos mínimamente próxima a ésta. En tercer lugar, la burocratización y, sobre todo, la corrupción han sumido en un creciente descrédito a los instrumentos de protección administrativa (ya preventivos, ya sancionatorios). Se desconfía – c o n mayor o menor razón, según las ocasiones- de las Administraciones públicas en las que, más que medios de protección, se tiende a buscar cómplices de delitos socio-económicos de signo diverso.

 

Como se vê, então, a sociedade cobra do direito penal que ele previna e puna uma quantidade e qualidade tais de fatos que a ele não cumpre, quando se tem em mente a dogmática penal tradicional e o seu caráter de ultima ratio. O direito penal, portanto, vem assumindo um papel de vetor de políticas sociais, mais que de políticas criminais propriamente ditas. É o direito penal do risco[xxii].

 

Ao lado desta constatação, tem-se a de que “La literatura especializada más reciente sobre la matéria que aborda este trabajo es coincidente al afirmar que la participación de grandes corporaciones en la actividad delictiva socialmente dañosa ha esperimentado, en lo que va de este siglo, un acentuado crecimiento, sobre todo en dos áreas bien visibles: el ámbito económico y el ambiental”[xxiii].

 

É fato, portanto, que a sociedade de risco se caracteriza, também, pela globalização da qual decorre a formação de grandes corporações que também delinqüem (se com responsabilidade própria ou de terceiros se discutirá a seguir), notadamente contra o sistema econômico e contra o meio ambiente. Acrescentamos o bem jurídico “relações de consumo” dentre os mais violados pelos entes coletivos.

 

Disso surge a necessidade de que o direito penal venha a tratar de fatos delitivos atribuídos às pessoas jurídicas e então se depara com o problema dogmático-penal já mencionado de que, não tendo as pessoas jurídicas vontade própria em sentido psíquico, ela não tem capacidade de culpabilidade ou, em outros termos, de imputabilidade.

 

Diante da necessidade de imputação penal às pessoas jurídicas e da ausência de uma dogmática adequada ao tratamento, o legislador brasileiro optou por se valer do que vem sendo chamado de direito penal simbólico[xxiv], instituindo previsão legal de imputação penal às pessoas jurídicas sem que, em contrapartida, tenha instituído um sistema adequado para esta imputação.

 

 

IV – Os principais sistemas existentes

 

Diante da necessidade político-criminal de que as pessoas jurídicas passem a ser tratadas pelo direito penal, o legislador brasileiro tinha como fonte no direito comparado alguns modelos vindos de países que já haviam adotado a imputação penal às pessoas jurídicas.

 

O direito penal francês é uma dessas fontes. Por este sistema jurídico, a pessoa jurídica somente pode ser responsabilizada penalmente juntamente com a(s) pessoa(s) natural(is) que agiu(ram) para a produção do resultado; esta responsabilidade deve estar prevista no tipo penal especial, e não apenas de forma genérica na parte geral; e o fato deve ter sido praticado por conta da pessoa jurídica e pelos seus órgãos ou representantes. Como penas possíveis se têm, dentre outras, a de multa, a de dissolução da pessoa jurídica, a de colocação sob supervisão judicial, proibição de emissão de cheques[xxv].

 

Na França, é de se ver, o elemento subjetivo da culpabilidade se vê presente na responsabilização penal da pessoa jurídica. A literatura jurídica por lá trata o fenômeno como responsabilidade “por ricochete”, ou seja, “o ‘empréstimo’ para o âmbito da pessoa jurídica da vontade da pessoa natural que efetivamente praticou a conduta”[xxvi]. Isso significa que a prática de um fato punível reprovável por uma pessoa física é condicionante da responsabilidade penal da pessoa jurídica[xxvii]. A regra[xxviii] lá, então, é de que haja subsidiariedade da responsabilidade penal da pessoa jurídica à da pessoa física.

 

É de se destacar, contudo, que o direito francês, de forma diferente do que ocorre no Brasil, não tem o princípio da culpabilidade insculpido na constituição. Lá, é princípio legal, e não constitucional[xxix].

 

Outros exemplos com tratamentos semelhantes são os ordenamentos jurídico-penais da Holanda e da Dinamarca.

 

Regrado de forma diversa, há o sistema vigente na Inglaterra. A diferença, como não poderia deixar de ser, já tem fundamento para existir na diferença entre os sistemas jurídicos gerais, já que no Reino Unido vigora o common law.

 

Por este sistema, a responsabilidade penal da pessoa jurídica seria objetiva porquanto para que a ela se possa imputar a prática de um fato punível, há a necessidade de uma ação ou omissão de um ser humano. A partir daí, se faz um “salto” da pessoa física para a jurídica.

 

 

V – O direito brasileiro

 

No direito brasileiro, a responsabilidade penal passou a ser prevista pela lei 9.605 de 12.02.1998 que, em seu artigo 3º, caput, dispõe que “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade” e, no parágrafo único do mesmo dispositivo, que “a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato”.

 

A responsabilidade penal da pessoa jurídica, como se vê, se dá por fato alheio, que decorre do sistema inglês, que admite este tipo de imputação. Afora isso, o direito brasileiro buscou inspiração no sistema francês[xxx].

 

Sustenta-se que a previsão legal mencionada teria respaldo na Constituição da República de 1988 que, em seus artigos 173, §5º e 225, §3º dispõe, respectivamente, que “a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a
economia popular” e que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.

 

Buscando demonstrar que o texto Constitucional não tem o sentido que se lhe quer dar de autorizador da implementação de responsabilidade penal da pessoa jurídica, Luís Luisi informa que o §5º do artigo 173 da Constituição da República era redigido de forma a prever, expressamente, tal responsabilidade[xxxi]. Assim, como o texto foi modificado para entrar em vigor sem a previsão expressa da imputação penal à pessoa jurídica, restaria clara a intenção do legislador constituinte originário brasileiro de não admiti-la.

 

Quanto ao texto do art. 225, §3º, afora a discussão sobre seu sentido gramatical, a não autorização da imputação penal à pessoa jurídica decorreria de interpretação normativa em consonância com os princípios, também constitucionais, que regem o direito penal brasileiro. Assim o princípio da pessoalidade da pena (art. 5º, XLV, CR/88), o da individualização da pena (art. 5º, XLVI, CR/88) que se materializa com base na culpabilidade, o que nos leva às questões já levantadas quanto à dogmática penal.

 

Chama a atenção o fato de que a lei brasileira, diferentemente do que fez a francesa, não traz de forma específica quais os tipos penais cujas práticas podem ser imputadas às pessoas jurídicas, contentando-se com a enunciação desta possibilidade de forma geral, deixando ao judiciário a questão acerca de, ocorrendo a prática de algum fato penalmente relevante contra o meio ambiente, ser a sua responsabilidade atribuível ou não à pessoa jurídica.

 

Tal fato significa que a norma não tem aplicação concreta e imediata, porquanto ainda lhe faltem instrumentos necessários a tal fim[xxxii].

 

Vê-se ainda, pelo texto do parágrafo único do artigo 3º da Lei 9.605/98 que o direito brasileiro importou do direito francês a teoria da responsabilidade por “ricochete” ao manter necessária a imputação a uma pessoa física para que ela possa ser feita à pessoa jurídica. E o fez de forma indevida já que, aqui, ao contrário de lá, a culpabilidade tem caráter constitucional.

 

De se concluir, pois, com Luiz Régis Prado no sentido de que “não obstante, em rigor, diante da configuração do ordenamento jurídico brasileiro – em especial do subsistema penal – e dos princípios constitucionais penais que o regem (v. g., princípios da personalidade das penas, da culpabilidade, da intervenção mínima etc.) e que são reafirmados pela vigência daquele, fica extremamente difícil não admitir a inconstitucionalidade desse artigo, exemplo claro de responsabilidade penal por fato alheio”[xxxiii].

 

A necessidade político-criminal, decorrente da expansão do direito penal imposta pela sociedade de risco não pode ser causa e justificação para a imposição de responsabilidade penal objetiva às pessoas jurídicas, havendo necessidade de que, concomitante ou previamente a esta, se institua um sistema dogmático penal que lhe dê sustentação e que, ao mesmo tempo, esteja de acordo com os princípios constitucionais de um Estado Democrático de Direito com se anuncia o brasileiro, sob pena de este enunciado se bastar por um sentido meramente formal.

 

 

VI – Conclusão

 

Seja a pessoa jurídica algo real ou fictício, fato é que, ainda que exclusivamente de forma normativa, sua atuação se faz sentir no mundo real. Este mundo real a que se refere vive um dinamismo tecnológico, científico, de informações, etc., de tal monta que se fala em uma verdadeira sociedade de risco, caracterizada, dentre outros fatores, pelo de que os efeitos desta dinâmica e do conseqüente desenvolvimento não são previstos na mesma velocidade e intensidade em que o crescimento é experimentado, daí decorrendo o risco acentuado que marca a sociedade contemporânea.

 

Esta situação leva a necessidade de que as pessoas jurídicas, em grande parte responsáveis pelo mencionado dinamismo, ajam nos limites do que a sociedade entende como juridicamente admissível atualmente, com respeito aos bens jurídicos penais. Não basta, contudo, a mera previsão de que as pessoas jurídicas devam respeitar os bens jurídicos sob ameaça de pena, sendo necessária a instituição de uma dogmática jurídico-penal que lhe dê sustentação, sob pena de cair em evidente inconstitucionalidade.

 

A conseqüente inconstitucionalidade das normas que assim são impostas decorre do uso indiscriminado do direito penal pelo legislador brasileiro, que dele se vale para obter o “efeito simbólico” de produzir na sociedade a sensação de que a ela está prestando o serviço que lhe compete, disso, em verdade, não passando.

 

Notas:

[*] El autor es Advogado; professor universitário, especialista em direito processual; mestrando em direito.

[i] COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de direito comercial. v. 2: direito de empresa. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

[ii] De lembrar, por exemplo, que os escravos, embora seres humanos, não eram sujeitos de direito, mas sim objetos de direitos e deveres. Cfr. MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário: sociedades simples e empresárias. v. 2. São Paulo: Atlas, 2004, p. 59.

[iii] REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. v. 1. 27 ed. rev. e atual. por Rubens Edmundo Requião. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 387.

[iv] TOMAZETE, Marlon. Direito societário. 2 ed. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2004. p. 50.

[v] Idem. ibidem

[vi] PRADO, Luiz Régis. Direito penal do ambiente: meio ambiente, patrimônio cultural, ordenação do território e biossegurança (com análise da lei 11.105/2005). São Paulo: RT, 2005, p. 145.

[vii] Idem, ibidem.

[viii] FERRARA, Francesco, apud TOMAZETE, Marlon, op. cit., p. 54.

[ix] BRUNO, Aníbal. Direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1967.

[x] BACIGALUPO, Enrique. Manual de derecho penal: parte general. Santa Fé de Bogotá: Editorial Temis S. A., 1996, p. 89.

[xi] Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

[xii] VARGAS, José Cirilo de. Instituições de direito penal: parte geral. Tomo I. Belo Horizonte, Del Rey, 1997, p. 351.

[xiii] von BELING, Ernst. Esquema de derecho penal. La doctrina del delito tipo. Buenos Aires: Libreria El Foro, 2002, p. 67. Tradução de Sebástian Soler dos originais Grumidzüge des Strafivcht, 11" edición 1930 e Die Lehre ivn Tatbestand. 1930.

[xiv] ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Traducción de la 2ª edición alemana y notas por Diego-Manuel Luzon Pena, Miguel Díaz y García Conlledo, Javier de Vicente Remesal. Madri: Civitas, 1997. p. 822 e seguintes.

[xv] Op. cit., p. 345 e seguintes.

[xvi] De fato, em algumas situações, ainda que uma conduta hu
mana seja condição para a produção de um resultado, a sua ausência pode não significar a não ocorrência deste resultado. É o que ocorre, por exemplo, com um fuzilamento ilícito em guerra que, se não houvesse sido feito por uma pessoa, o seria por outra. Não há como se negar que a conduta imputada levou ao resultado morte, o que não se verificaria pela teoria da equivalência.

[xvii] MEZGER, Edmund. Derecho penal. Parte general. Buenos Aires: Editorial Bibliográfica Argentina, 1958. p. 88.

[xviii] BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução na sociedade de risco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 33-34. O autor caracteriza a sociedade atual como de risco a partir dos ensinamentos de Ulrich Beck primeiramente expostos em sua obra “La sociedad del riesgo” (de 1986) a quem se atribui não a autoria da temática da sociedade de risco, mas sua projeção ao centro da teoria social.

[xix] SILVA SANCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal. Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. Madri: Civitas, 2000, p. 22.

[xx] Idem, ibidem.

[xxi] Idem. p. 45-46.

[xxii] SILVA, Pablo Rodrigo Alflen da. Características de um Direito Penal do Risco . Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1816, 21 jun. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11390>. Acesso em: 04 ago. 2008.

[xxiii] CESANO, José Daniel. En torno a la denominada responsabilidad penal de la persona juridica. Córdoba: Alveroni Editores, 1998, p. 11.

[xxiv] SILVA, op cit. O autor sugere umas das causas dessa “expansão simbólica” do direito penal afirmando que o legislador “procura suscitar na sociedade a confiança de que está fazendo algo em relação aos problemas que àquela pareciam irresolúveis, produzindo o efeito de acalmar as reações emocionais que produzem entre os cidadãos, mas que na realidade produz instrumentos que não são aptos para a luta efetiva e eficiente contra a criminalidade real, e produzem unicamente um ‘efeito simbólico’, em razão da sua ineficácia.”

[xxv] CESANO, José Daniel. Op. cit., p. 25.

[xxvi] LUISI, Luís. Notas sobre a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. In _____ PRADO, Luiz Régis (coord.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica. Em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 87.

[xxvii] PRADO, Luiz Régis. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. Fundamentos e implicações. In_____ PRADO, Luiz Régis (coord.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica. Em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 124.

[xxviii] As exceções à regra se referem às infrações de omissão, culposas ou materiais.

[xxix] PRADO, Luiz Régis. Op. cit, p. 120.

[xxx] PRADO, Luiz Régis. Op. cit, p. 128.

[xxxi] LUISI, Luís. Op cit, p. 88. A referência feita no texto é ao §3º do art. 173 da CR/88, em evidente equívoco. O texto original era assim redigido: “a lei sem prejuízo da responsabilidade individual dos integrantes da pessoa jurídica estabelcerá a responsabilidade criminal desta”.

[xxxii] PRADO, Luiz Régis. Op. cit, p. 129.

[xxxiii] PRADO, Luiz Régis. Op. cit, p. 128.